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Alexander Iakovenko

Por que a Rússia deve agradecer à nova administração dos EUA

Moscou ganhou carta branca para agir de modo independente nas relações internacionais e se desenvolver conforme as suas próprias visões

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Alexander Iakovenko

Ex-embaixador russo no Reino Unido, é reitor da Academia Diplomática do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia

A última extravagância do presidente norte-americano, Joseph Biden, que telefonou ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, manifestou seu interesse em normalizar as relações russo-americanas, em seguida lançou uma nova série de sanções anti-russas e ainda por cima declarou mais um estado de emergência na segurança nacional sob pretexto de algumas “ações mal-intencionadas” de Moscou, marca para a Rússia um momento de emancipação, cujo pleno significado apenas a historiadores caberá avaliar.

Contudo, já está claro que desapareceram os resíduos das ilusões dos últimos 30 anos de que estamos tratando com um Ocidente racional, o qual, na sua beneficência, daqui a pouco passará a se comportar de maneira normal em relação à Rússia e ao resto do mundo. Acabamos por descobrir que essa normalidade, inerente nos EUA e no Ocidente em geral, é a aspiração por hegemonia e pela sua preservação, custe o que custar e a despeito de uma transformação radical do mundo após o fim da Guerra Fria.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante reunião com membros do Conselho de Legisladores da Assembleia Federal, em São Petersburgo
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante reunião com membros do Conselho de Legisladores da Assembleia Federal, em São Petersburgo - Alexei Maishev/Sputnik/AFP

Sentíamos falta desta clareza, não apenas no campo de política externa. Por vezes, tínhamos de levar em consideração a possível reação das capitais ocidentais a certos passos que visavam assegurar os nossos interesses nacionais. A propósito, a União Europeia, que decidiu apoiar o aumento da pressão sancionatória sobre a Rússia, deve entender que essa abordagem desvaloriza a sua opinião, para nós.

Temos plena liberdade não só de atuar no palco internacional como bem entendermos, mas também de desenvolver o país de acordo com os nossos próprios ideais, fortalecendo a nossa autossuficiência econômica e financeira.

A pandemia revelou muito sobre quem é quem na questão de assegurar a saúde da própria população e a segurança epidemiológica global. É provável que a incapacidade tão óbvia para todos de vencer esta "corrida" (tida como tal pelas próprias elites ocidentais) tornou-se a notória "gota d'água" que forçou os Estados Unidos e o Ocidente em geral a agirem de maneira provocativa, contrária ao bom senso e ao "processo diplomático" a que Biden continua a se referir.

O mais importante, talvez, seja que o comportamento dos EUA, que em resposta usual à crise interna procuram inimigo externo e apontam culpados no exterior, nos livra do fardo da relativa dependência ainda presente na área de desenvolvimento. Isso, além da libertação da dependência financeira, pode servir de exemplo para todos os países não ocidentais, evidentemente, onde for necessário (pois, é pouco provável que seja o caso de Pequim).

De fato, ao destruir toda a infraestrutura de controle de armas, os Estados Unidos também nos libertaram no campo do desenvolvimento militar, no qual agora podemos ser guiados exclusivamente por nossos próprios interesses de segurança e de desenvolvimento das tecnologias que temos.

Claro que preferiríamos atuar em coordenação com os parceiros, mas eles fizeram a sua escolha, o que nos facilita a vida. Os norte-americanos nunca esconderam a relutância em levar em consideração os parceiros. Agora eles resolveram compartilhar essa liberdade conosco.

Alguém dirá: "Obrigado, América!". Para outros, será o tão esperado "Good bye, América!". Mas não se pode deixar de notar o profundo simbolismo desse adeus "estratégico" até tempos melhores. A conduta banal dos EUA em todos os sentidos nos ajuda a alcançar o mais importante —emancipação intelectual.

O mesmo vale para a esfera da opinião pública. É triste, mas pode ser oportuno que tudo isso também se refere à Europa a favor da qual muitos ainda resolviam as dúvidas, admitindo que é difícil fazer isso em relação aos EUA.

Tendo como pano de fundo a cultura política do excepcionalismo dos EUA que resolvem seus problemas internos por nossa conta e a eficiência das sanções próxima a zero, a libertação mental serve como uma vantagem crucial na situação corrente. Tal como qualquer outra, ela deve ser considerada no contexto de equilíbrio de possibilidades e problemas. As primeiras obviamente prevalecem.

Agora devemos ter como ponto de referência o resto do mundo ao qual prestávamos atenção insuficiente por causa de concentração nos nossos problemas com o Ocidente. Agora esse espaço está vazio, inclusive no sentido filosófico dada a falha do principal produto ocidental —o capitalismo—, que perdeu rosto humano adquirido graças à concorrência com a URSS no período pós-guerra.

Estou convencido de que o principal fator desmoralizador e até paralisador representado pelo Ocidente, sua ideologia, política e valores, está saindo da política global e da nossa vida pública. É por isso que devemos agradecer à nova administração dos EUA.

Texto publicado originalmente no jornal russo Nezavisimaia Gazeta, tradução Embaixada da Rússia

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