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Fernanda Mena

'Sofagate' é novo capítulo no inventário que exclui mulheres do poder

Líder turco não reservou lugar para presidente da Comissão Europeia em reunião; país ocupa 130ª posição no ranking global de igualdade de gênero

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São Paulo

Existem várias maneiras de insinuar que uma pessoa não pertence a determinado contexto. Quando se trata de mulheres em espaços de poder, há um inventário histórico sobre modos eficientes de constrangimento, silenciamento e exclusão.

Um dos menos sutis deles é não lhes garantir um lugar para se sentar numa reunião em que há assentos demarcados para os demais participantes homens. Foi o que ocorreu com Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, deixada sem lugar no encontro com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, nesta terça (6), na capital turca.

Em reprodução de vídeo, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, de costas, no momento em que percebe não ter uma cadeira para ela durante reunião com o líder da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, à dir., e o chefe do Conselho Europeu, Charles Michel, em Ancara
Em reprodução de vídeo, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, de costas, no momento em que percebe não ter uma cadeira para ela durante reunião com o líder da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, à dir., e o chefe do Conselho Europeu, Charles Michel, em Ancara - AFP

Ela acabou se acomodando num sofá lateral, distante do epicento do encontro, e o episódio ganhou a alcunha de sofagate. Pegou mal para o presidente do Conselho Europeu ter feito cara de paisagem diante do desconcerto da colega de UE.

Em seu livro "Mulheres e Poder - Um Manifesto" (editora Planeta), a historiadora britânica Mary Beard discorre sobre as origens da "culturalmente constrangedora relação entre a voz das mulheres e a esfera pública" em que, quando não são silenciadas, as mulheres ainda pagam um preço alto para serem ouvidas.

Beard remonta o não lugar da mulher na esfera pública desde a Grécia antiga e chega aos insultos sexistas lançados contra lideranças políticas contemporâneas como Hillary Clinton, Angela Merkel e Dilma Rousseff.

Segundo a autora, ao adentrarem a esfera pública e incorporarem as práticas e as habilidades que antes definiam a própria masculinidade, as mulheres têm encontrado resistência e hostilidade, discriminação e misoginia.

Não à toa, um dos temas do encontro foi a recente decisão do líder autoritário turco de abandonar a Convenção de Istambul, acordo internacional de prevenção da violência contra mulheres.

Ao deixar a presidente da Comissão Europeia literalmente sem lugar, o populista Erdogan manda recado sobre sua indisposição com o tema, representado pela presença feminina de Von der Leyen.

A retirada da Turquia da convenção ocorreu após pressão de grupos islâmicos conservadores sob o argumento de que o acordo teria impacto negativo na "estrutura familiar" tradicional turca.

Em 2020, a Turquia registrou 284 casos de feminicídio. No ranking de igualdade de gênero de 2020 elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, a Turquia estava na 130ª posição de 153. Os países da União Europeia em pior posição no ranking eram Hungria (105ª) e Grécia (84ª) —o Brasil ocupava a 92ª posição.

Na tentativa de suavizar o mal-estar gerado pelo episódio, houve quem argumentasse que o presidente do Conselho tem precedência em relação a seu par da Comissão Europeia, e por isso Michel se sentou, e Von der Leyen não. Houve ainda quem culpasse um cerimonial mal feito, destacando que o Conselho Europeu mandou um representante para organizar a reunião com antecedência, enquanto a Comissão, por causa da pandemia, preferiu não mandar ninguém para esses ajustes prévios.

De qualquer modo, era sabido quem seriam os participantes do encontro, e o fato de a única mulher presente ter sido o alvo do constrangimento não é um mero detalhe.

O feminismo já nomeou várias das práticas que alijam mulheres de posições de protagonismo seja na esfera pública ou privada. Esse catálogo inclui gaslighting (deslegitimação de posicionamentos femininos como se fossem exagero ou loucura), mansplanning (quando um homem explica a uma mulher algo óbvio ou que ela já sabia), bropriation (apropriação de ideias de mulheres sem o devido crédito) e manterrupting (interrupção da fala de uma mulher por um homem que aspira ter a última palavra).

O movimento de mulheres talvez precise agora criar nova nomenclatura para casos de lideranças femininas potentes que acabam menosprezadas ou desprezadas por seus pares masculinos, seja no mundo político, seja no universo corporativo.

Alguém pode arriscar uma flexão de palavras como "cadeira" ou "sofá" com um verbo excludente, mas, no fundo, a tradução será a mesma: medo de perder domínio e privilégio.

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