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Três meses após golpe em Mianmar, militares recorrem a reinado de terror

Prisões estão novamente cheias de poetas, monges, jornalistas e políticos, e a população teme detenções arbitrárias

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Hannah Beech
The New York Times

Toda noite às 20h, o sisudo apresentador da TV militar de Mianmar anuncia os caçados do dia. As fotos de fichas policiais dos acusados de crimes políticos aparecem na tela. Entre eles estão médicos, estudantes, atores, repórteres e até uma dupla de blogueiras de maquiagem.

Alguns dos rostos parecem inchados e machucados, provavelmente em consequência de interrogatórios. Eles são um aviso para ninguém se opor à junta militar que tomou o poder em 1º de fevereiro e prendeu os líderes civis do país. Enquanto os insetos noturnos ciciam, a caçada se intensifica. Os censores militares cortam o acesso à internet na maior parte do país, combinando a escuridão lá fora com um apagão de informação. Soldados vasculham cidades, prendendo, sequestrando e atacando com estilingues e fuzis.

Manifestantes fogem após chegada de militares para dispersão de protestos nas ruas de Rangoon, em Mianmar
Manifestantes fogem após chegada de militares para dispersão de protestos nas ruas de Rangoon, em Mianmar - 12.abr.21/The New York Times

As batidas nas portas à noite, arbitrárias e temidas, geram uma febre de autopreservação. Os moradores deletam suas contas no Facebook, destroem chips de celular incriminadores e apagam vestígios de apoio ao governo eleito de Mianmar. Dormir torna-se difícil, como se grande parte do país sofresse de insônia.

Há pouco mais de uma década, a mais simples das infrações —ter uma fotografia da líder democrática do país, Aung San Suu Kyi, um celular não registrado ou uma nota de moeda estrangeira— poderia significar uma sentença de prisão. Algumas ordens orwellianas dos militares rivalizavam com as da Coreia do Norte.

Três meses depois que a experiência de democracia em Mianmar foi estrangulada com a tomada do poder pelos generais, a sensação de mau agouro retornou. Não há indício de que ela diminuirá. Na maior parte de 60 anos, o domínio de militares em Mianmar foi animado não por uma ideologia grandiosa, mas pelo medo. Hoje, com grande parte da população decidida a resistir aos que armaram o golpe, uma nova junta militar está consolidando seu poder recorrendo, mais uma vez, a um reinado de terror.

"Mianmar está voltando aos maus velhos tempos, quando as pessoas tinham muito medo de que seus vizinhos as denunciassem e elas fossem presas sem qualquer motivo", disse Ko Moe Yan Naing, um ex-policial que hoje está escondido depois de se opor ao golpe.

As prisões estão novamente cheias de poetas, monges budistas e políticos. Outras centenas de pessoas, muitas das quais jovens, desapareceram, e suas famílias não sabem de seu paradeiro, segundo um grupo que acompanha as detenções pelos militares. Mais de 770 civis foram mortos por forças de segurança desde o golpe, entre as quais dezenas de crianças. Assim como faziam anos atrás, as pessoas caminham pelas ruas carregadas de adrenalina, com a sensação de cabelos eriçados na nuca, quando o olhar mais demorado de um soldado ou de um passante esfria o ar.

Mas se a junta está voltando ao regime do medo, mantém como seu refém um país diferente. A reação popular de oposição ao golpe, que realiza protestos em centenas de cidades e vilarejos, certamente não estava nos planos dos militares, tornando sua repressão mais arriscada. Nem o resultado do golpe nem o destino da resistência estão definidos.

A real saída de Mianmar do isolamento —econômico, político e social— só ocorreu cinco anos atrás, quando os militares começaram a dividir o poder com um governo eleito chefiado por Aung San Suu Kyi.

A população que quase não tinha conexões com a internet rapidamente recuperou o tempo perdido. Hoje, os cidadãos são experientes em redes sociais e entendem a força de protestos ligados a movimentos globais. Eles sabem localizar um bom meme político na internet.

Sua resistência ao golpe incluiu uma greve nacional e um movimento de desobediência civil que paralisaram a economia e corroeram o governo. Bancos e hospitais estão praticamente fechados. Embora a ONU tenha advertido que a metade do país poderá viver em situação de pobreza no próximo ano devido à pandemia e à crise política, a vontade da oposição democrática não dá sinais de arrefecer.

No final de março, Ma Thuzar Nwe, professora de história, marcou sua pele em desafio. A tatuagem em sua nuca diz: "Revolução da primavera fevereiro de 2021".

Lá Fora

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A polícia hoje está parando pessoas nas ruas, procurando provas em seus telefones ou seus corpos de apoio ao Governo de União Nacional, uma autoridade civil organizada depois que a liderança eleita foi expulsa pelos militares. Uma tática popular é colar uma imagem do general Min Aung Hlaing, o líder do golpe, na sola do sapato, esmagando seu rosto no chão a cada passo.

Durante as verificações policiais, agora as pessoas são intimadas a mostrar as solas dos sapatos.

Mas o Tatmadaw, como são chamadas as Forças Armadas de Mianmar, construíram toda uma infraestrutura dedicada a um único objetivo: perpetuar seu poder a qualquer custo. Sua burocracia de opressão é formidável. Um exército de informantes, conhecidos como "dalan", ressurgiu, monitorando sussurros e movimentos de vizinhos.

O Departamento de Administração Geral, um vasto aparato de nome discreto, que continuou sob o controle militar mesmo depois que o exército começou a compartilhar a autoridade com o governo civil, está mais uma vez pressionando os administradores para que vigiem as opiniões políticas de todos.

E as autoridades locais passaram a bater nas portas e espionar as residências, com a volta do temido sistema de registros familiares. Toda manhã, enquanto os residentes contam os mortos e desaparecidos, a mídia militar apresenta sua versão da realidade, que predomina depois que a junta revogou a licença editorial dos grandes jornais privados.

A democracia voltará em breve, insistem as manchetes militares. Os serviços bancários estão "normais". Atendimento de saúde com "maquinário moderno" está disponível. Ministros desfrutam cursos de aperfeiçoamento de inglês. O cultivo de siris de casca mole "prospera" e penetra o mercado estrangeiro.

O Tatmadaw pode ter modernizado seu arsenal militar, adquirindo armas chinesas e jatos de combate russos. Mas sua propaganda está presa ao passado, quando poucos contestavam sua narrativa. Não há menção às matanças militares, à economia em crise ou à crescente resistência armada. Na quarta (5), o Conselho de Administração do Estado, como a junta chama a si mesma, proibiu a TV via satélite.

Apesar de todo o medo que permeia Mianmar, a resistência só se fortaleceu. Na quarta, o Governo de União Nacional disse que está formando uma "força de defesa popular" para enfrentar o Tatmadaw. Dois dias antes, insurgentes étnicos que combatem nas fronteiras derrubaram um helicóptero militar.

Ignorando esses fatos, a mídia Tatmadaw dedica espaço a supostas infrações de milhares de civis que devem ser presos por "minar a paz e a estabilidade do Estado". Entre eles estão pacientes com Aids tão fracos que mal conseguem andar.

Mais que para a população civil, essa propaganda se destina a convencer as fileiras militares de que o golpe foi necessário, segundo fontes internas. Isolados em instalações militares sem bom acesso à internet, os soldados têm pouca capacidade de avaliar a indignação dos cidadãos.

Sua dieta de informação é composta de TV militar, jornais militares e as câmaras de eco do Facebook dominado por militares nas raras ocasiões em que eles conseguem entrar online. Mas as notícias se infiltram, e alguns oficiais rompem fileiras. Nas últimas semanas, cerca de 80 oficiais da Força Aérea desertaram e agora estão escondidos, segundo seus colegas.

"A política não é assunto para soldados", disse um capitão da Força Aérea que hoje está escondido e não quer que seu nome seja publicado porque sua família poderia ser punida. "Hoje o Tatmadaw se tornou terrorista, e não quero fazer parte disso."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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