Cresce a repressão na Nicarágua, onde a democracia está por um fio

Meses antes de eleição, Daniel Ortega leva país a um passo de se tornar um Estado unipartidário

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Yubelka Mendoza Anatoly Kurmanaev
Manágua | The New York Times

Candidatos oposicionistas foram detidos. Protestos foram proibidos. E partidos políticos foram cassados.

Apenas meses antes de tentar se reeleger, o líder da Nicarágua, Daniel Ortega, levou o país a um passo de se tornar um Estado unipartidário, reprimindo a oposição em uma escala que, segundo analistas, não era vista desde a supressão brutal dos protestos antigoverno de 2018.

As iniciativas agressivas criam um desafio inesperado para a administração Biden, que está fazendo do fortalecimento da democracia na América Central um dos pilares de sua política em relação à região.

Policiais em frente à casa de Cristiana Chamorro, candidata à Presidência da Nicarágua, em Manágua
Policiais em frente à casa de Cristiana Chamorro, candidata à Presidência da Nicarágua, em Manágua - Inti Ocon - 2.jun.21/AFP

A repressão de Ortega alcançou um ponto de inflexão quando seu governo acusou de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica a candidata oposicionista líder Cristiana Chamorro e a colocou em prisão domiciliar, horas depois de ela ter anunciado planos para se candidatar à Presidência na eleição de 7 de novembro.

Outro candidato, Arturo Cruz, foi detido pela polícia no sábado por alegadamente “conspirar contra a sociedade nicaraguense”. Três outros candidatos presidenciais foram confinados em casa pela polícia, sem qualquer acusação formal, o que concretamente os impede de lançar uma campanha eleitoral.

“Ortega está quase acabando com toda a concorrência política no país”, observou o analista nicaraguense Eliseo Núñez, também ativista da oposição. “Estamos muito perto de descrever isto como uma ditadura.”

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A velocidade do deslize do país em direção ao autoritarismo pegou de surpresa até mesmo muitos dos adversários do presidente. Ex-líder da junta revolucionária nicaraguense, Ortega, desde que retornou ao poder em 2007 com uma vitória em eleições democráticas, vem gradualmente desmontando as instituições democráticas do país e sufocando a oposição.

Em 2018, mais de 320 pessoas, em sua maioria manifestantes, morreram em protestos contra seu governo. Foi a pior onda de violência política na América Latina em três décadas.

Os protestos ajudaram a mergulhar um dos países mais pobres da região em uma recessão econômica prolongada e levaram à imposição de sanções dos EUA contra as principais autoridades nicaraguenses. As sanções incluíram a esposa de Daniel Ortega, Rosário Murillo, que é a vice e porta-voz de Ortega.

Depois dos protestos, Ortega iniciou discussões com a oposição, numa tentativa de aliviar a pressão econômica e internacional. No ano passado, fechou um acordo com a Organização dos Estados Americanos para promover mais lisura e imparcialidade no sistema eleitoral do país.

Mas quando o prazo para adoção da reforma se aproximava, no mês passado, mudou radicalmente de direção, apostando na repressão. Ele colocou partidários em postos no conselho eleitoral. Lançou uma série de leis que permitem a funcionários deter ou desqualificar de cargos praticamente qualquer cidadão que tenha expressado a desaprovação do presidente, incluindo jornalistas e políticos.

“Ortega fez o exato oposto do que se esperava”, disse Carlos Tünnerman, ex-funcionário sênior no governo revolucionário de Ortega nos anos 1980. “Mostrou que está disposto a tudo para permanecer no poder.”

O passo mais ousado do governo até agora foi a detenção inesperada de Chamorro, herdeira de uma das famílias mais ricas e influentes da Nicarágua. Sua mãe derrotou Ortega em eleições em 1990. Até recentemente, Cristiana Chamorro dirigia uma fundação que formava jornalistas independentes no país, financiada em parte com dinheiro recebido dos Estados Unidos. Foi esse fato que levou o governo a acusá-la de lavagem de dinheiro e subversão.

Hoje apenas um grupo oposicionista digno de crédito ainda está qualificado a participar da eleição de novembro, tendo assim se tornado a derradeira esperança dos adversários do presidente. Intitulado Cidadãos pela Liberdade, o grupo está no processo de escolher seu candidato presidencial, que se converterá no porta-estandarte “de facto” da oposição, normalmente dividida.

Analistas políticos dizem que um candidato sério do Cidadãos pela Liberdade teria uma boa chance de mobilizar a maioria dos eleitores nicaraguenses que não apoiam o governo, criando assim uma ameaça eleitoral grande ao partido governista.

Ortega parece não estar disposto a correr risco nenhum. Na sexta-feira, o conselho eleitoral, aliado do governo, lançou uma ameaça mal disfarçada de cassar qualquer candidato que não obedeça às novas leis que criminalizam a dissensão política. Líderes oposicionistas dizem que a nova diretiva autoriza os funcionários eleitorais a cassar qualquer candidato que represente um risco sério a Ortega ou ao candidato que ele escolher. Desse modo, o presidente na prática deixa de ter qualquer oposição.

“Está claro que eles estão abertos a dar esse passo final”, comentou Félix Maradiaga, um dos nomes mais cotados para se tornar o candidato da Cidadãos pela Liberdade. Ele próprio se encontra sujeito à prisão domiciliar periódica, sem acusação legal, desde novembro passado. A porta-voz de Ortega, Rosario Murillo, não respondeu a um pedido de declarações sobre a detenção de candidatos oposicionistas.

A deterioração acelerada das salvaguardas democráticas no país criou um desafio para a administração Biden, que já enfrenta dificuldades para frear a ascensão do autoritarismo na América Central.

Autoridades e parlamentares americanos reagiram à detenção de Cristiana ameaçando impor novas sanções a Ortega. “Estamos avaliando que ações podemos adotar para responder” à repressão política, disse ao Voice of America o assessor-chefe da Casa Branca para a América Latina, Juan González.

Para Tiziano Breda, analista da América Central no think tank International Crisis Group, a dependência da Nicarágua nas exportações preferenciais aos EUA e em empréstimos concedidos por credores internacionais financiados pelos EUA tornam as sanções uma ameaça econômica grave a Ortega.

Mas a imposição de sanções pesadas correria o risco de provocar uma crise na economia nicaraguense, que já passa por uma contração, desencadeando um novo êxodo de migrantes da região para os EUA.

“Ortega já presidiu em meio a uma economia de guerra”, diz Breda. “Ele está mostrando que está disposto a repetir a história. A questão é: os EUA estão dispostos a enfrentar as consequências de suas ações?”

Tradução de Clara Allain

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