Em meio a desconfiança, novo premiê do Haiti toma posse

Ariel Henry defende solução interna para crise e fala em eleições inclusivas e transparentes

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São Paulo

O novo primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, 71, tomou posse nesta terça-feira (20), após quase duas semanas do assassinato do presidente Jovenel Moïse e da disputa por poder que se seguiu, e em meio a um clima de desconfiança no país caribenho.

No início de seu discurso, Henry pediu um minuto de silêncio em memória do presidente. Logo depois, desejou boa recuperação à mulher de Moïse, Martine, baleada na ocasião, e defendeu penas exemplares aos autores de uma "prática bárbara" e que devem "pagar pelo crime".

Novo primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, discursa em sua posse, acompanhada pelo agora ex-premiê Claude Joseph
Novo primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, discursa em sua posse, acompanhada pelo agora ex-premiê Claude Joseph - Valerie Baeriswyl/AFP

O novo premiê destacou o momento de crise sem precedentes no país e disse que "nunca mais devemos viver tal drama". Avaliou que Moïse o nomeou não por avaliar que ele seja "um super homem, capaz de fazer milagres", mas um "democrata e um homem de diálogo". "É com muita humildade, sem pretensão, mas com muita determinação que aceitei essa missão."

Sobre a discutida solução para o país, Henry defendeu que ela deve ser feita por haitianos e para todos os habitantes do país, sem exceção, mas reconheceu ser uma crise multifacetada. Na questão da segurança, prometeu mais recursos para a polícia e para o Exército.

Já sobre a pandemia, falou rapidamente que o objetivo é ter vacina disponível para todos e agradeceu a ajuda da comunidade internacional —os EUA doaram 500 mil doses por meio do consórcio Covax Facility, da Organização Mundial da Saúde.

E na questão central do momento, a crise política, Henry abordou a necessidade do diálogo. "[É preciso] Um acordo entre competidores, pois a disputa interminável não leva a nada", disse. "Os interesses seus e do país pedem um compromisso, uma mudança de paradigma."

Vagamente, o novo premiê abordou a realização de eleições que incluam a maior parcela possível de haitianos aptos a votar. "Nosso sistema eleitoral será credível, honesto e transparente e irá garantir que ninguém será favorecido." Ao finalizar sua fala, Henry agradeceu os novos ministros por aceitarem integrar um "governo consensual e inclusivo".

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Já em sua fala de saída, Claude Joseph usou palavras como coragem e patriotismo para falar da atuação nas duas últimas semanas e agradeceu a seu governo e à polícia haitiana pelo trabalho no momento de crise.

O agora ex-premiê defendeu o acordo político e um diálogo amplo e sincero para estabelecer um "clima de apaziguamento político". Também cobrou que é preciso levar a cabo a investigação do assassinato do "meu amigo" Moïse.

Neurocirurgião e ex-ministro do Interior e de Assuntos Sociais (2015-16), Henry havia sido nomeado por Moïse para assumir o cargo —o sétimo premiê de seu mandato. No dia em que deveria tomar posse, no entanto, o presidente foi assassinado, e o então titular, Claude Joseph, permaneceu no cargo interinamente.

Com a chegada de Henry, Joseph, no entanto, não deixa completamente o círculo de poder. Entre os 18 ministros anunciados, ele se mantém no comando da pasta de Relações Exteriores e Cultos. Essa dita continuidade —até porque ambos foram nomeados por Moïse— desagradou à oposição, e a posse do novo premiê não significará um apaziguamento na acirrada crise política, que vinha antes mesmo da morte do presidente.

Apesar das promessas do novo premiê, a oposição se mostra desconfiada e acredita que suas escolhas para o governo não refletem um espírito de consenso, que deve ser selado em um acordo político.

Porta-voz da coalizão de oposição Setor Democrático e Popular Nacional, Andre Michel havia dito, antes mesmo da posse, que Henry não possuía disposições legais e constitucionais para montar um governo, segundo o jornal haitiano AlterPresse. "A comunidade internacional está pegando o caminho errado. É preciso um grande consenso, associado a um acordo político, para sair do impasse atual."

Entre a sociedade civil haitiana, a troca de poder também não é bem-vinda. A economista Emmnauella Doyoun, do coletivo Nou pap dòm, vê a nova equipe como uma "piada ruim", segundo o AlterPresse.

"Os coveiros da República já estão prontos para seguir sua obra. É preciso realmente odiar o Haiti para apoiar esse procedimento imundo", escreveu em seu Twitter. A organização faz parte de uma comissão da sociedade civil haitiana que busca uma solução dentro do próprio país para a crise.

O Haiti já enfrentava dificuldades mesmo antes da morte de Moïse, mas seu assassinato acirrou a crise política, que tinha no centro da disputa uma discussão sobre o término do mandato presidencial. Moïse foi eleito em 2015 e deveria ter tomado posse em 7 de fevereiro de 2016 para um mandato de cinco anos. Em meio a acusações de fraudes, porém, o pleito foi anulado e teve que ser refeito no ano seguinte. Durante esse período, o país foi comandado por um governo interino.

Ele saiu vencedor na nova votação e assumiu o comando do Haiti em 7 de fevereiro de 2017. Como o mandato presidencial no país é de cinco anos, ele alegava que deveria permanecer no cargo até fevereiro de 2022 —pleito apoiado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelos EUA. A oposição, porém, defendia que seu mandato deveria ter se encerrado em fevereiro deste ano.

Em meio a essa discussão, o presidente suspendeu as eleições de meio de mandato, o que deixou vagos dois terços do Senado, toda a Câmara dos Deputados e todos os prefeitos. Assim, Moïse passou a comandar o país via decretos —o que rendeu uma onda de protestos contra o governo e acusações de autoritarismo.

Após o crime, Joseph assumiu o comando do país e declarou estado de sítio durante duas semanas, medida que ampliou os poderes do Executivo. De início, ele teve respaldo da ONU e dos EUA para assumir o comando do país, mas no sábado (17) o Core Group, que reúne embaixadores estrangeiros, mudou de posição e defendeu a formação de um governo consensual e inclusivo, sem Joseph à frente.

"Encorajamos fortemente que o primeiro-ministro designado Ariel Henry continue a missão confiada a ele de formar um governo", disse o grupo, em comunicado no sábado (17). O Core Group reúne embaixadores e outros representantes de Brasil, Alemanha, Canadá, Espanha, Estados Unidos, União Europeia, ONU e OEA (Organização dos Estados Americanos).

Isso deu força ao pleito de Henry, que defendia a renúncia de Joseph. Nesta segunda, ele afirmou ao Washington Post que se reuniu com Henry na última semana para resolver a disputa e que aceitou entregar o cargo "pelo bem da nação". "Todos que me conhecem sabem que eu não estou interessado nessa batalha ou em qualquer tipo de disputa pelo poder", disse o premiê ao jornal americano. "O presidente era meu amigo. Eu estou interessado em ver justiça".

O governo dos EUA saudou o acordo. "É alentador ver os atores políticos e civis haitianos trabalhando para formar um governo de unidade que possa estabilizar o país e assentar as bases para eleições livres e justas", disse o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price.

Além de protagonizar a crise política, Joseph é investigado como um dos possíveis mandantes do assassinato de Moïse, segundo reportagens publicadas na última semana pela imprensa colombiana —mais de 20 suspeitos pelo crime são ex-militares do país sul-americano. A ideia seria prender Moïse, alvo de contestação pela forma autoritária com que governava, mas, segundo as investigações, o primeiro-ministro teria mudado de ideia e resolvido mandar matá-lo.

A polícia haitiana, até a troca de poder subordinada ao governo Joseph, negou que o agora ex-premiê esteja sob investigação.

Jovenel Moïse foi morto em casa na madrugada do último dia 7. Sua mulher, Martine Moïse, ficou gravemente ferida e foi levada a Miami para receber tratamento médico. Ela voltou ao Haiti no sábado (17).

O governo Moïse foi marcado por instabilidade, com protestos violentos principalmente depois de um aumento dos preços dos combustíveis em 2018. Após seu assassinato, o país voltou a mergulhar no caos, com ações de gangues armadas nas ruas, falta de gasolina em postos e risco de desabastecimento de comida.

Até agora, não há conclusão sobre quem foi o mandante do assassinato nem a razão do crime. Segundo o governo haitiano, o presidente foi morto por um grupo de mercenários, que incluía militares colombianos aposentados. Mais de 20 pessoas foram presas por conexão com o caso.

A polícia haitiana acusou o médico Christian Emmanuel Sanon, 63, de ser o mentor do crime e o prendeu. Ele vive na Flórida, mas teria viajado ao Haiti com planos de assumir o comando do país.

Já Jorge Vargas, chefe da polícia colombiana, disse que um ex-funcionário do Ministério da Justiça do Haiti, Joseph Felix Badio, deu a dois mercenários colombianos a ordem de matar o presidente. Mas não está claro se Badio, por sua vez, estava seguindo as ordens de outra pessoa.

Alguns dos mercenários suspeitos disseram, em depoimento, que receberam a missão de prender Moïse e levá-lo para o palácio presidencial, mas que, ao chegar, encontraram-no morto.

Ex-funcionário de uma unidade anticorrupção do Ministério da Justiça, Badio é uma das muitas pessoas procuradas pela polícia haitiana, junto com o ex-senador da oposição Joël John Joseph, acusado de fornecer armas para o crime. Ambos são descritos como "armados e perigosos".

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