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Manifestantes em Cuba gritam sem querer ouvir os demais, diz Padura

Escritor cubano responde a críticos que consideram que ele deveria ser 'mais radical'

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Buenos Aires

Escritor vivo mais famoso de Cuba, Leonardo Padura, 65, diz que a polarização dos discursos na ilha cria um "estado de ódio", em que "um lado grita para o outro e acha que tem a razão". E que a atual situação de desentendimento "não resolve os problemas dos cubanos".

O escritor cubano Leonardo Padura, em sua casa na capital do país, Havana - Katell Abiven/AFP

Em entrevista à Folha de Mantilla, o bairro de Havana em que vive desde que nasceu, o autor de "O Homem que Amava os Cachorros" comenta os protestos ocorridos no último dia 11 e sua repressão por parte da ditadura cubana.

Padura responde a críticas que recebeu por ter afirmado que o embargo é responsável pela crise cubana e por ter se mostrado contra uma intervenção estrangeira.

O sr. criticou discursos "extremistas" nas manifestações e apontou para um "estado de ódio" que existe hoje em Cuba. Pode defini-lo? O estado de ódio implica que seu opositor, aquele que não concorda com suas ideias, é seu inimigo. E com o inimigo se luta, com muitas armas, ou com todas as armas.

Em geral, começa-se com a degradação verbal, e desde aí pode haver uma escalada perigosa. O estado de ódio implica posições extremas, nas quais o diálogo está excluído, assim como a convivência e a concórdia, pois pede-se um castigo.

Eu temo muito que, em Cuba e entre os cubanos de dentro e os de fora, esteja se fortalecendo um estado de ódio. Porque sobre o ódio não se pode construir, somente destruir, ferir e não curar.

Que cada um tenha suas razões é importante, mas como canalizá-las é definitivo. Vi e sofri pessoalmente o que ocorre quando um desacordo se transforma em um motivo de ataque. Mesmo que o atacado somente tenha dito o que pensa e o que vê e tenha partido de verdades mais ou menos indiscutíveis. Aconteceu comigo muitas vezes.

Por exemplo, agora mesmo, por mencionar num artigo que, entre os diversos problemas que gravitaram sobre a crise que hoje se vive em Cuba, está o bloqueio ou embargo norte-americano, disseram que eu sou porta-voz do regime ou algo parecido. Como se o bloqueio ou embargo não fosse uma realidade.

Me acusam com ódio. Sei que, nessas pessoas, há a influência de muita mesquinhez humana, que é disfarçada pela máscara da discordância política, e que alguns não me perdoam por ser quem sou e por ter conseguido, apenas com meu trabalho, o que eu consegui.

E como é o ódio do outro lado? No outro lado do espectro político, obviamente, estão os que consideram que falar de inconformismos, de necessidades, de falta de expectativas de futuro, de perda de esperança, é um ataque ao sistema. Ou que escrever o que eu escrevi durante anos também é, como me disse um funcionário do regime cubano quando o filme "Retorno a Ítaca" [produção de 2014 baseada em romance do autor] foi censurado. Ele me disse que os conflitos dos personagens não eram pessoais, mas com o sistema.

É claro que me preocupa, e muito, que os intransigentes, os intolerantes, os fundamentalistas imponham seus métodos e estilos.

Para uma Cuba inclusiva e melhor precisamos de acordos, soberania, liberdade de expressão e pensamento. O fundamentalismo funciona com outras cargas, incluindo o ódio ao outro.

Lá Fora

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O sr. crê que haja, de parte de gente que está fora de Cuba, a visão de uma polarização cega? Para uns, o problema é o embargo, para outros, o socialismo. Quais são os matizes que não estão sendo vistos? Esta pergunta me coloca numa posição complicada. Creio que teríamos de falar de soluções políticas e econômicas e não sou político nem economista. Temo ser esquemático ou superficial. É certo que, para alguns, o embargo é a causa de muitos males, e para outros, o socialismo é que é o demônio.

Mas a realidade é que ambos existem: o embargo e o socialismo. E, quando ambos os fatores entram em jogo, produz-se uma confrontação. O certo é que Cuba viveu com o embargo e com o socialismo durante mais de 60 anos e nunca se havia produzido uma manifestação de descontentamento como nesses últimos dias.

Seria importante buscar os matizes nas razões que provocaram essa explosão social. Creio que as mudanças que a sociedade cubana exige e necessita não são só econômicas e vêm sendo adiadas desde muito antes de 11 de julho, como se não houvesse pressa em realizá-las.

E agora, na realidade, parece que se deu razão aos que pediam pressa e foram criticados por isso. O tempo perdido está cobrando seu preço porque, há muito tempo, esse preço está sendo pago pela porcentagem da população que empobreceu, que está fazendo as filas intermináveis para todas as coisas, que aspira emigrar para qualquer lugar, que sente que a vida passa em uma espera que não termina.

Como vê a atuação de Díaz-Canel [presidente de Cuba]? O sr. crê que, ao não ser um Castro e não ser um militar, possui elementos que o enfraquecem? Díaz-Canel, primeiro como presidente da República e agora também como secretário-geral do Partido Comunista, assumiu essas responsabilidades com a encomenda política de dar continuidade ao sistema político-social cubano. Esta é sua crença.

O que se teria de perguntar é se a continuidade implica uma prolongação mais ou menos exata do que foi forjado pelos governos de Fidel e de Raúl e se, em todos os âmbitos, implica a preservação de um sistema inamovível ou se, dialeticamente, tem uma margem maior ou menor de manobras, além da vontade de adequar a sociedade cubana atual às exigências, necessidades, expectativas, que hoje são diferentes.

Em que se parece a crise atual com a dos anos 1990? Pode-se comparar, mas obviamente é uma crise diferente. Há carências, apagões, embargo norte-americano, mas o país é outro, apesar de o sistema ser quase idêntico.

Hoje se vive um desgaste dos discursos políticos, uma acumulação das carências econômicas, um recrudescimento maior das sanções econômicas e financeiras. Existem em Cuba gerações que cresceram nessas circunstâncias e que foram, majoritariamente, as que se manifestaram nas ruas e nas redes sociais.

Gerações entre as que, se há tantos marginais e delinquentes, como dizem os meios oficiais cubanos, são marginais e delinquentes criados dentro do sistema. E isso nos adverte de que algo, ou muito, falhou.

Creio que o presidente tem os recursos de força para controlar os movimentos de protesto, sem dúvida. Polícia, muitos civis, e eventualmente o Exército. Esta seria a solução mais fácil, mas também a mais dolorosa. Reprimir, julgar e impor a calma. Mas sempre é a pior saída. A violência não é o remédio de que Cuba precisa. A melhor estratégia seria escutar as razões no meio deste ruído e tomar muitas medidas de que se falou e não se materializaram, e outras que também são necessárias para abrir mais a sociedade, para agilizar a economia, para ampliar o espectro das expressões sociais e até políticas.

Penso que são questões importantes porque com mudanças em todos os setores da vida cubana se estaria tratando de chegar a soluções necessárias para conseguir que as pessoas tenham uma vida melhor do que a que está vivendo hoje, com tantas dificuldades para conseguir quase tudo, sem dinheiro para comprar muitas das coisas que precisa. Muitos estão sem esperança, o que é o pior.

O que se pode pedir ou esperar da comunidade internacional para tentar ajudar a solucionar a crise cubana? Tudo o que ocorreu nos últimos dias, a quantidade de palavras que se cruzaram, as entrevistas dadas por quem protesta servem para algo? Resolvem algo? Melhoram algo?

Creio que estamos vivendo um típico momento em que ninguém quer escutar, ou só escutar o que cada um quer ouvir. E, para isso, além de uns não escutarem os outros, há desqualificações, ataques, acusações. Não se resolve nada.

Se as pessoas se escutassem mais e melhor, as manifestações de 11 de julho talvez não tivessem ocorrido. Se nesse dia se produziu ruído, é porque, desde muito antes, já havia murmúrios, lamentos e até gritos. Agora continuam gritando, de uma esquina a outra, para ver quem tem a voz mais alta, mas sem escutar os demais, que nem sempre são inimigos, mas a quem é mais fácil demonizar como inimigos para cada um achar que está com a razão. Ou com mais razão, ou com a única razão.

Durante anos, pensei que era possível e necessária a conciliação entre todos os cubanos, de dentro e de fora, mas hoje tenho a impressão de que isso é impossível. A política cubana é uma ferida demasiado profunda e não é possível fechá-la com costuras.

Fora de Cuba costuma-se ter uma imagem maniqueísta do país. Ou se glorifica o sistema ou se sataniza. Ou se pede a ele firmeza ou ele é mandado à forca.

Desde fora de Cuba podem-se ter posições de hostilidade, de crítica ou de apoio e solidariedade, que dependem do caráter político ou dos interesses de quem as promovam.

Mas as soluções mais desejáveis não devem vir de fora. Elas precisam ser propiciadas desde dentro de Cuba e é hora de buscar e aplicar essas soluções que ainda não se materializaram. Se melhorássemos a vida dos cubanos, poderíamos dar mais voz aos inconformes. E, assim, chegar a consensos construtivos.

O sr. sempre quis permanecer na ilha e se sentiu livre para realizar seu trabalho nela. Teme que esse cenário mude de algum modo? Não sou capaz de prever o futuro, ainda que este já seja um cenário diferente do que poderíamos ter imaginado antes do dia 11 de julho. Já mais nada será igual. Pode ser que exista vontade política de abrir espaços sociais e econômicos, que se reconheçam e se cuidem os direitos à expressão que tanto se reclamaram nos últimos meses. Não sei.

Creio que a sociedade cubana já é mais aberta hoje do que antes. E o governo precisa lidar com isso, queira ou não. E se não quer, não basta ignorar esse fenômeno, mas ele terá de reprimi-lo inclusive em determinados momentos e lugares. Não tudo se resolverá com cortar as comunicações por internet durante uma semana, como ocorreu agora.

Para mim, viver e escrever em Cuba é uma necessidade existencial e física. Eu pertenço a Cuba e Cuba me pertence. Eu me alimento da realidade, dos conflitos, da língua cubanos. Sou um observador dessa realidade e tenho sido um cronista dessa realidade por meio da minha literatura, meu jornalismo, minha ensaística, meu trabalho para o cinema.

Fora de Cuba, alguns compatriotas me criticam porque deveria ser mais radical. Mas eu não acho que exista nada mais radical, escrito em Cuba, do que os meus romances. Muitos me pedem que faça ou diga o que eles nunca fizeram ou disseram, provavelmente porque eles nunca puderam escrever o que eu escrevi vivendo em Cuba.

A sociedade cubana precisa ser pensada e expressada por muitos e é o direito de todos ter a possibilidade de pensá-la e expressá-la dentro desses limites que sempre mencionei, os limites do que é inadmissível política ou eticamente: a agressão à soberania do país, a xenofobia, a homofobia, as atitudes fascistas e agressivas que conduzam à violência. O demais pode ser discutido e a realidade demonstra que deve ser discutido.


Raio-x

Leonardo Padura, 65
Graduado em Literatura pela Universidade de Havana, trabalhou como jornalista e é autor de obras como Hereges (2013), O Homem que Amava os Cachorros (2015), Paisagem de Outono (2016), O Romance da Minha Vida (2019), Como Polvo en el Viento (2020)

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