Com vídeos sobre sexo, humor e política, youtubers de Cuba desafiam o regime

Dirigente da ilha culpou influenciadores digitais por onda de protestos; ativista foi presa ao vivo

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São Paulo

“Nunca faça isso bêbada”; “Terminei com meu namorado, conto tudo”; “Minha mãe responde aos meus seguidores”. Até uma semana atrás, a youtuber cubana Dina Stars postava em seu canal vídeos com títulos como esse. Os temas, a estética e a linguagem em nada destoavam do conteúdo produzido por outros jovens que usam a rede social em qualquer lugar do mundo.

No domingo (11), Dina postou um vídeo direto dos protestos que explodiram contra o regime cubano em toda a ilha. Na terça (13), ela foi presa em sua casa, quando dava uma entrevista para uma TV espanhola. "A polícia está aqui fora, tenho que sair", contou, nervosa. "Vão prendê-la ao vivo", diz a apresentadora, incrédula. Dina volta e, olhando para a câmera, declara: "Torno o governo responsável por qualquer coisa que possa me acontecer."

O vídeo viralizou, e iniciou-se uma campanha dentro e fora de Cuba para que ela fosse solta. Na quarta, Dina foi libertada. Antes até de tomar banho ou falar com a mãe, postou no Instagram um vídeo dizendo que estava bem. No Twitter, deu mais detalhes: “Cheguei em casa depois de passar 24 horas em um calabouço como se eu fosse criminosa. Sim, me trataram bem, mas de qualquer forma é uma noite que não desejo a ninguém”, escreveu.

Cria de uma geração de cubanos que se tornaram influenciadores digitais depois da popularização da internet na ilha —especialmente após a chegada da rede 3G para celulares em 2018— Dina é um exemplo entre vários que se uniram às manifestações. Ela não foi a única presa. Ariel Falcón, do Twitter @YoUsoMiNasobuco, Liam, do instagram @soy_liam, e Enrique Alonso, do canal Talento Urbano The Show, estão entre os que seguem detidos, segundo familiares e ativistas.

Youtubers cubanos, que ficaram famosos após a chegada da internet móvel e irritam o regime - Reprodução

Os protestos começaram em San Antonio de los Baños, perto de Havana, e se alastraram rapidamente para outras cidades. Transmissões dos atos postadas ao vivo no Facebook —as “directas”, como dizem os cubanos—, muitas delas por usuários desconhecidos na internet, contribuíram para chamar mais público.

Ao falar do episódio, o líder do regime cubano, Miguel Díaz Canel, culpou os youtubers, chamando-os de “delinquentes” que “manipulam as emoções da população por meio das redes sociais”.

Questionado pela Folha, o cônsul-geral de Cuba em São Paulo, Pedro Monzón, disse que esses youtubers são cubanos de ultradireita que vivem em Miami, respaldados financeira e politicamente pelos EUA, que promovem a insubordinação e a invasão da ilha e contam mentiras de forma agressiva.

“Os influencers que fizeram os cubanos saírem às ruas foram a fome, a miséria, a falta de medicamentos, a ditadura. Nós não temos culpa, apenas mostramos a realidade”, rebate Ruhama Fernández, 22, que tem um canal no YouTube com seu nome. “Ninguém esperava que isso acontecesse. [O protesto] não foi planejado, não foi um ou vários influencers que disseram que se faria tal dia a tal momento.”

Lá Fora

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Moradora de Santiago de Cuba, Ruhama é uma das poucas que vivem na ilha e criticam explicitamente o regime em seus vídeos. “Fora da ilha há muitos cubanos que fazem conteúdo frontal contra o regime. Aqui dentro é mais complicado. Eu faço isso desde o começo do meu canal e passei por muitos inconvenientes: repressão, perseguição a mim, a meus amigos e à minha família”, contou à Folha.

Segundo ela, o que aconteceu agora é que outros influenciadores que falavam de moda, maquiagem, viagens ou comédia estavam também insatisfeitos com a situação e decidiram ir às ruas ou postar campanhas de apoio aos manifestantes em seus canais.

Ruhama disse que tem medo de ser presa e por isso está escondida. Ela decidiu transformar seu canal em uma “prova diária de vida”, postando todas as manhãs um vídeo ao vivo dizendo que está em segurança.

“Se eu não postar um vídeo algum dia de manhã é porque estou presa ou desaparecida”, diz. “Estão entrando nas casas e levando as pessoas. Vejam o Ariel [Falcón], tem milhares de seguidores no Twitter e mesmo assim continua detido.”

Monzón, cônsul de Cuba, diz que o que o país fez foi “localizar, para processar, as pessoas que cometeram vandalismos, saquearam mercados, atacaram hospitais e tentaram romper transformadores elétricos para provocar apagões, agrediram a polícia e violaram as leis”. “Uma quantidade deles tem processos judiciais como delinquentes. Qualquer país do mundo teria reagido assim.”

Ele acrescenta que Cuba está “tranquila e estável”. “Não há desaparecidos, os familiares dos processados sabem onde eles estão.”

No próprio domingo, às 16h, a internet caiu na ilha. O regime nega que tenha sido de propósito, mas ativistas dizem que é uma prática que já aconteceu em outros momentos e que foi premeditada.

Segundo o cubano radicado em Miami Norges Rodríguez, fundador do portal sobre tecnologia Yucabyte, crítico ao regime, várias iniciativas internacionais que monitoram a internet no mundo confirmaram o apagão geral. Ele afirma que depois de algumas horas foi bloqueado o acesso somente às redes sociais, o que durou mais de um dia. Esse bloqueio parcial costuma ser burlado pelos internautas. “Mas quando derrubam a internet por completo, não tem jeito, o país fica apagado”, diz Rodríguez.

Em sua visão, o acesso à internet em Cuba, após décadas em que as notícias eram controladas pela mídia oficial, é uma versão moderna da Perestroika (reformas que levaram à abertura da antiga União Soviética). “Abriu os olhos das pessoas. Elas começaram a ver conteúdo que nunca viram, a ter acesso às notícias do mundo, a fazer comparações.”

A reportagem localizou poucos youtubers pró-regime, alguns deles vivendo fora da ilha. Em um discurso parecido com o do outro lado, ativistas de oposição dizem que eles são financiados pela ditadura cubana para confundir a opinião pública. O cônsul, porém, afirma que o que eles fazem é desmontar as notícias falsas divulgadas sobre Cuba.

Segundo o brasileiro David Nemer, professor da Universidade da Virgínia que pesquisa os aspectos socioculturais do uso da internet em Cuba, há diferentes grupos entre os que usaram as redes sociais para protestar nesta última semana. Um deles usa a hashtag #SOSCUBA, mas não se identifica com os que pedem #IntervencionHumanitariaparaCuba (intervenção humanitária, interpretada como uma ingerência dos EUA no país).

“A questão é muito mais complexa do que pedir a queda do governo. Eles pedem comida, vacina, mais liberdade, mas uma das reivindicações que mais fazem é o fim do bloqueio econômico dos EUA, até porque está ligado à falta de tudo isso.”

Segundo ele, grupos de Whatsapp e Facebook servem para reunir reclamações legítimas dos cubanos, mas também para a difusão de fake news que “deixam os nervos à flor da pele”.

Ele afirma que a existência dos influenciadores digitais é uma novidade inclusive para as autoridades cubanas, que não sabem como lidar com eles. “É a primeira geração digital de Cuba. Eles estão acostumados com a forma de se comunicar da internet, de emitir opinião do jeito que querem, e o governo não sabe lidar com críticas, vê isso como um perigo”.

Em sua opinião, bloqueios à internet na ilha podem até atrapalhar pontualmente a extensão de um protesto, mas não impedem mobilizações futuras. “Agora abriu a porteira, eles já viram que têm possibilidade de se organizar. Acho que os protestos vão virar uma coisa mais presente na vida dos cubanos, e o governo sabe disso.”

8 youtubers cubanos contra o regime...

Ruhama Fernandez
https://www.youtube.com/channel/UCwMMvIfUBh7ASBkYyGjdjiQ
A ativista cubana transformou seu canal em uma “prova diária de vida”, onde posta diariamente ao vivo para mostrar que está bem e que não foi presa.

Cubanos por el mundo
https://www.youtube.com/c/Cubanosporelmundo
Canal do cubano Alexander Otaola, que mora nos EUA, um dos principais youtubers contra o regime castrista.

Dina Stars
https://www.youtube.com/c/dinastars
A youtuber, que foi presa ao vivo na última semana, tem também forte presença no Instagram e faz vídeos sobre namoro, sexo e estilo de vida em Cuba.

Camallerys Vlogs
https://www.youtube.com/c/CamallerysVlogs
Cubano que vive no México, Frank Camallerys posta sobre o dia a dia nos dois países, com críticas ao regime.

Frank El Makina
https://www.youtube.com/channel/UCXKunCivtalSa-Q2NvHbc6A
O youtuber cubano faz vídeos sobre a experiência de morar e viajar pelo país, com críticas às dificuldades vividas pela população.

Pinky Unicornio
https://www.youtube.com/channel/UCBMCcSfIL7DbDGaIC8VC1cg
Modelo erótico, o cubano produz conteúdo LGBT e faz críticas à violação de direitos humanos na ilha.

El Gato de Cuba
https://www.youtube.com/c/ELGATODECUBA
Canal de Yoandi Montiel Hernández, preso em abril deste ano por "falar mal do governo e instigar as pessoas a saírem às ruas", segundo sua família.

Come Pizza Online
https://www.youtube.com/c/comepizzaonline
Em seu canal de humor, Adriano López conta a experiência de um cubano vivendo em Miami e faz paródias musicais críticas ao regime.

...e 4 que o defendem

Al Estilo Palencia
https://www.youtube.com/c/AlEstiloPalencia/
Daniel Palencia, cubano que mora na Argentina, faz um canal dirigido aos conterrâneos no exterior. Entre os vídeos, a paródia musical “Como se faz um dissidente” mostra os críticos ao regime como pessoas que “vendem a pátria por umas moedas”.

​Guardianes de la salud
https://www.youtube.com/channel/UCrza2QT5yFFnz4UzpeR4J0w
Os médicos Naila Ayrado e Ernesto Cordoví postam vídeos de noticiários favoráveis ao regime e contrários ao bloqueio americano e dizem valorizar, no canal, “o valor altruísta dos profissionais da saúde cubanos”.

Guerrero Cubano
https://www.youtube.com/channel/UCuuyMX-sE3WUv0E3FM8vyxg/about
Sem mostrar o rosto e com voz indignada, ataca os dissidentes do regime e diz que os vídeos críticos ao regime são fake news.

La tarde se mueve
https://www.youtube.com/c/LaTardeSeMueveEdmundoGarcia
O jornalista cubano Edmundo García transmite desde Miami o que chama de “programa alternativo”. Nos vídeos e no Twitter, elogia Díaz-Canel e usa hashtags como #FidelVive.

Erramos: o texto foi alterado

Em versão anterior desta reportagem, a foto utilizada para identificar o youtuber El Gato de Cuba mostrava outra pessoa. A imagem certa foi incluída. 

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