Descrição de chapéu Belarus

'Não descuidem; autoritários comem a democracia pelas bordas', diz líder da oposição belarussa

Em Vilnius, onde se exilou há um ano, Svetlana Tikhanovskaia diz querer apoio do Brasil na luta contra Aleksandr Lukachenko

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Vilnius

Países em que a democracia está em risco devem olhar para a crise na Belarus para entender o quão difícil é recuperá-la, diz a líder de oposição Svetlana Tikhanovskaia.

Um ano e um dia depois de ter sido forçada pelo regime de Aleksandr Lukachenko a deixar seu país, a ex-dona de casa que aos 38 anos se tornou a face do movimento pela democratização da Belarus afirma que pode ser um risco contar com a liberdade como algo garantido.

“Não descuidem. Porque os autoritários vão comendo tudo pelas bordas até que o colapso seja incontrolável”, diz a ex-candidata a presidente, em seu escritório em Vilnius (a capital da Lituânia), onde se exilou.

mulher de cabelos castanhos escuros cultos e terno calro, em saguão amplo com grandes janelas, posa em frente a um laptop aberto sobre uma mesa
A líder oposicionista belarussa Svetlana Tikhanovskaia em saguão do prédio de seu escritório em Vilnius, onde está exilada há um ano - Anna Krasulina/Divulgação

No papel de principal representante da oposição belarussa, Tikhanovskaia mudou o guarda-roupa e cortou os cabelos, por decisão de sua equipe: “Tenho que ser mais formal, não posso sair por aí de rabo de cavalo”.

Calça jeans e camisa branca também deram lugar a terninhos e salto alto. Mas o que desaponta na nova persona, segundo alguns belarussos ouvidos pela Folha em Vilnius, é a sensação de que ela se afastou da população —distância que Tikhanovskaia nega e atribui a seu esquema de segurança.

Foi acompanhada de dois guarda-costas que ela deixou seu escritório após a entrevista, realizada em um moderno edifício recém-inaugurado na capital lituana. Agentes de segurança a protegem em todo evento público.

Tikhanovskaia sabe que há na dissidência grupos favoráveis ao uso da força contra Lukachenko, que criticam sua "resistência pacífica". Ela diz considerar normal a luta por poder dentro da oposição, mas espera que sua decisão de não entrar na política eleitoral concilie interesses e mantenha unidos os antiditadura.

Sua prioridade, afirma, é reforçar alianças e elevar pressões contra o regime —e nisso a líder belarussa gostaria de contar com o apoio dos brasileiros: “Daqui a alguns meses haverá a reunião do G20, em que o Brasil tem voz forte. Precisamos de mais aliados e queremos estabelecer uma comunicação com o Brasil”.

Sua equipe, porém, ainda não conseguiu um contato direto no país.

Nesta semana fez um ano de sua expulsão da Belarus. Que memória restou daquele dia? Ainda sinto o medo que passei no gabinete da comissão eleitoral e no meu transporte para a fronteira, o temor de que algo pudesse acontecer comigo, com meus amigos. Acho que jamais vou me livrar dessa memória.

Desde então houve enormes marchas na Belarus, apoio internacional e rodadas de sanções, mas os presos políticos continuam na cadeia, Lukachenko não aliviou a repressão e rompeu regras internacionais, ao interceptar o avião em que viajava o blogueiro Roman Protassevich. O que falta para enfraquecê-lo? Sua posição está se enfraquecendo a cada dia. As primeiras rodadas de sanções eram morais, mas, depois que ele se mostrou uma ameaça a outros países, a reação foi imediata e forte. Só agora os países lançaram de fato sanções setoriais conjuntas. Será preciso aguardar para saber o impacto.

Também por dentro há mudanças. Pessoas próximas a Lukachenko percebem cada vez mais que ele acabou, por mais que se agarre ao poder. Ele se tornou politicamente tóxico, é impossível negociar com ele. Empresas passaram a reconsiderar se querem continuar no barco que afunda ou preferem se unir à sociedade civil.

Externamente, nossa tarefa é manter a Belarus na pauta, e para isso é preciso explicar aos países democráticos nossa realidade. Sinto que às vezes é até difícil para eles entenderem a situação em que estamos.

Lá Fora

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O que eles não entendem? Por exemplo, perguntam que partido eu represento, e preciso explicar que não temos partidos de fato, competição política. Há o ditador e o resto da população.

Foi importante para nós a recepção dos países, espero que o encontro com [o presidente dos EUA] Joe Biden mostre aos países não tão envolvidos que é preciso, porque trata-se de defender a democracia, os direitos humanos.

O Brasil, por exemplo, é o maior país da América do Sul e pode ser uma voz forte quando necessário. Daqui a alguns meses haverá a reunião do G20, em que o Brasil tem uma voz forte, e nesse momento precisamos de mais aliados, e queremos estabelecer uma comunicação com o Brasil.

Já houve algum contato de sua equipe com autoridades brasileiras? Estamos tentando, mas ainda não conseguimos um contato direto.

A sra. tem obtido conquistas diplomáticas, mas grupos dissidentes defendem o uso da força para mudar a Belarus. Vê a revolução como um caminho possível? Estamos num processo de revolução. Protestos agora são impossíveis, porque o preço é alto demais, muitas vítimas, muitos feridos. Não queremos ativistas na cadeia, eles são muito mais eficazes livres, mesmo no exílio. Nossa tarefa agora é montar estruturas dentro da Belarus para manter a conexão entre eles, a coordenação. É isso que terá resultado, mesmo que não seja tão aparente.

Alguns veem apenas a brutalidade e a repressão da ditadura e pensam que fomos derrotados. Não fomos. O processo está em curso. Mas não queremos lutar na acepção mais usual dessa palavra, acreditamos em uma transição pacífica, e por isso precisamos aumentar a pressão sobre o regime, para que ele não tenha alternativa a não ser acatar as exigências da sociedade civil. Nossa exigência é negociação.

Com Lukachenko? Teremos que conviver com pessoas que estão no regime hoje, membros da nomenklatura [termo usado na União Soviética para a máquina do governo], das Forças Armadas, das forças de segurança. Os que não cometeram crimes severos certamente terão lugar em nossa sociedade.

Estão negociando com esses membros do regime? Temos contatos secretos com agentes de segurança e com a nomenklatura. Precisamos de pessoas lá dentro que possam nos enviar informações, vídeos, áudios, para orientar nossas decisões [após a entrevista, um assessor mostrou um desses vídeos de reuniões com Lukachenko, que mostrava o ditador descendo uma escada com dificuldade].

Os membros do regime estão ainda mais assustados que a população, mas sabem que a ditadura está desmoronando e querem uma saída viável dessa situação. Alguns que trabalham hoje para o regime em silêncio facilmente poderão trabalhar na nova sociedade também.

Num novo governo haveria então uma anistia? Nossa burocracia continua a trabalhar não graças à ditadura, mas apesar da brutalidade [ela reforça as palavras graças e apesar]. Eles serão úteis para construir nosso país no futuro.

Seu papel institucional é reconhecido pela diáspora, mas na manifestação do dia 9 [em Vilnius, para marcar um ano da eleição] alguns dos que entrevistei se declararam decepcionados pelo que veem como um afastamento, um distanciamento. Infelizmente, não é possível falar com todos. A situação está perigosa e minha equipe quer reforçar a segurança. Outro problema é que recebo muitos pedidos de ajuda. Mas é impossível para mim resolvê-los, achar um emprego para alguém, minha tarefa é coordenar instituições que possam encontrar essas soluções.

Duvido que alguém possa dizer que eu afasto as pessoas de mim. Mas não posso apertar mãos, tirar selfies, porque sempre há o risco de infiltrados prontos a provocar tumulto ou tentar me ferir.

Sei que mesmo entre os que querem mudar o regime há gente dizendo que estou agindo errado. Para eles, só posso dizer ‘faça melhor’. Faço o que posso. Às vezes me sinto ofendida. Não sou uma política experiente, geralmente me apoio na minha intuição. Entendo os que dizem ‘chega de flores e balões, vamos usar a força’. Mas me sinto responsável. É fácil dizer ‘pegue uma arma e vá’, mas a vida, o destino das pessoas seria minha responsabilidade. Conhecendo esse resultado, não posso lhes pedir isso.

Preocupa-se que os dissidentes estejam sendo divididos em vez de se unir? Acho que o desejo de mudança é mais forte. Sei que tenho muitos críticos em vários círculos, pode haver opiniões diversas, mas, se nossa meta é a mesma, precisamos ficar unidos. Principalmente porque não estou lutando para chegar ao poder. Minha meta é obter novas eleições, das quais não vou participar.

Os que concorrem querem ter mais poder, essa é uma ambição normal, mas não a minha. Não sou adversária dessas pessoas. Estamos falando com todos os lados, novos partidos, novas lideranças. Precisamos juntar esforços, não posso fazer tudo.

A sra. disse que há momentos em que se sente sem forças. Onde as recupera? [Respira fundo e faz uma pausa] Há manhãs em que acordo e sei que terei um dia duro, ou leio novas notícias péssimas, de prisões, perseguições. Mas penso que meu marido e minha amiga estão na prisão, me ponho no lugar deles e sei que não tenho o direito de fraquejar.

Mulheres são mais fortes do que pensam. Quando me perguntam onde encontro forças… Precisei reabilitar meu filho por dez anos sem saber se conseguiria, mas era meu dever todos os dias, mesmo sem ver luz no fim do túnel, porque é o que é preciso fazer.

Durante a campanha a sra. disse que a Rússia não era tema prioritário, mas, sim, a mudança do regime. O governo russo porém garante a sustentação atual de Lukachenko. Uma Belarus democrática pode ser ao mesmo tempo independente e neutra em relação à Rússia? Ou terá que se aliar ao Ocidente? Não estamos procurando inimigos e estamos abertos ao diálogo com qualquer país que nos ajude a sair dessa crise. Queremos mudar o paradigma de que estamos entre o Ocidente e a Rússia, por isso tenho procurado conversar com o Japão e outros países da Ásia. E a situação atual na Belarus não é confortável para o Kremlin, é do interesse de todos os nossos vizinhos que as sanções acabem, que os negócios sejam normalizados.

Também em países ocidentais há ataques à democracia, como mostram relatórios da UE sobre alguns de seus membros ou a invasão do Congresso nos EUA. No Brasil, o governo levantou dúvidas sobre as eleições do ano que vem, o que elevou as preocupações, embora alguns defendam que as instituições são capazes de evitar um colapso. Pela sua experiência com regimes autoritários, o que diria aos que lutam pela democracia em seus países? Eu diria que é tão fácil perder o que se tem. E, olhe para nós, é tão difícil recuperar. Não descuidem. Porque os autoritários vão comendo tudo pelas bordas até que o colapso seja incontrolável.

Eu diria que as sociedades precisam se envolver na política, não contar com a democracia como algo garantido, pelo qual não é preciso se esforçar. Todos precisam ser responsáveis pela liberdade do país. É preciso agir e pensar no futuro. Olhem para os países que estão lutando para conseguir o que vocês têm há tantos anos e tentem não perdê-lo.


raio-x

Svetlana Tikhanovskaia, 38
Também chamada de Sviatlana Tsikhanouskaya (em belarusso), foi a principal candidata de oposição ao ditador Aleksandr Lukachenko na eleição presidencial de 9 de agosto de 2020. Ex-professora de inglês e tradutora, ela era dona de casa quando assumiu a candidatura do mari do, o blogueiro Serguei Tikhanovski, detido pelo regime durante a campanha e na cadeia desde então. No dia seguinte à eleição, foi forçada a deixar a Belarus e se exilou na Lituânia, onde estão seu filho de 11 anos e sua filha de 5


Entenda a crise na Belarus

O que acontece na Belarus?

Desde agosto de 2020, manifestantes protestam contra eleição considerada fraudada, na avaliação de entidades internacionais, e pedem a saída do ditador Aleksandr Lukachenko. Após repressão violenta, milhares de detenções e mais de 500 presos políticos, os protestos de rua cessaram, mas há ações pontuais e virtuais, a chamada "guerrilha branca"

Homem meio careca de cabelos brancos e bigode escuro olha para o lado em frente a um fundo azul e uma bandeira vermelha e verde
O ditador belarusso Aleksandr Lukachenko em entrevista um ano após a eleição presidencial que desencadeou protestos no país - Pavel Orlovsky - 9.ago.2021/Belta/AFP

Quem é Lukachenko?

Ex-administrador de uma fazenda coletiva durante a antiga União Soviética, ele venceu a primeira eleição presidencial no país, em 1994 —a única considerada livre e justa. Desde então, concentrou poder, reprimiu a oposição e se reelegeu nos pleitos seguintes

O que mudou no ano passado?

A candidatura de Svetlana Tikhanovskaia, que reuniu campanhas perseguidas, atraiu forte apoio, levando à percepção de que, pela primeira vez, adversários de Lukachenko teriam chance nas urnas. Mas observadores foram impedidos de acompanhar a votação, e a ditadura divulgou que o presidente obteve 80% dos votos, desencadeando revolta e protestos.

Svetlana Tikhanovskaia tem algum cargo?

Não. Embora a eleição de Lukachenko não tenha sido reconhecida por alguns países e pela União Europeia, o ditador tomou posse em seu sexto mandato em setembro do ano passado.

Algumas organizações e países tratam Tikhanovskaia como "presidente moral" da Belarus, por ter sido a candidata de uma frente de oposição que reuniu três campanhas perseguidas pela ditadura.

Tikhanovskaia é hoje a figura de maior proeminência internacional na oposição a Lukachenko e foi recebida por cerca de 50 chefes de governo ou de Estado no último ano.

Tikhanovskaia é a única líder da oposição belarussa?

Não, e ela se define como independente, e não de oposição. Nenhum dos três candidatos que ela representou na eleição eram ligados a partidos.

Na campanha, Tikhanovskaia usou o programa da União Cívica (UCP), um partido liberal de oposição, e Alaksandar Dabravolski, um dos líderes da UCP, é um de seus principais conselheiros atuais. A líder belarussa contudo diz não ter pretensões eleitorais nem de atuação partidária.

Quem são outros líderes de oposição?

Após a eleição, foi criado um conselho de oposição para uma transição democrática, que acabou sufocado por Lukachenko. Um de seus líderes, o ex-ministro e diplomata Pavel Latushko, está exilado na Polônia e continua ativo em articulações contra o regime.

O executivo Viktor Babariko era o candidato mais popular ao ser preso, em junho de 2020, e, mesmo condenado a 14 anos de prisão, ainda aparece como o político mais citado em pesquisas de centros de estudo.

Há também movimentos de resistência descentralizados na Belarus, com centenas de grupos de apoio atuando em diversas áreas.

Outra corrente, presente entre belarussos que foram forçados a se exilar, defende uma revolução e quer treinar voluntários para lutar contra Lukachenko.

Por que houve sanções conjuntas contra a Belarus neste mês?

No final de maio, Lukachenko ordenou a interceptação de um voo da Ryanair que ia da Grécia à Lituânia e tinha a bordo um adversário de seu regime, o blogueiro Roman Protassevich, 26, que foi preso ao desembarcar em Minsk e está sendo processado por três crimes. O ato foi considerado um atentado à segurança da aviação civil e aos direitos humanos.

Se outras três levas de sanções não funcionaram, por que esta funcionaria?

As primeiras rodadas proibiram viagens e congelaram ativos de indivíduos e instituições envolvidos com a repressão violenta a manifestantes pacíficos, mas foram consideradas simbólicas, já que a elite da Belarus têm poucos investimentos no bloco europeu.

Agora, pela primeira vez serão afetados setores economicamente relevantes para o regime, como armas, tabaco, produtos de petróleo e potássio, responsável por parte considerável da receita belarussa.

Novas restrições também afetam empresas que mantiverem negócios com estatais belarussas, incluindo comércio e finanças.

A estratégia é elevar o custo da ajuda russa, para que o governo de Vladimir Putin deixe de sustentar Lukachenko.

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