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Bolsonaro 'passa batom no porco' e cria na ONU Brasil da realidade paralela bolsonarista

Em discurso, magnitude da dissonância cognitiva do governo ou tentativa de reescrever a história surpreendem

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São Paulo

Em seu discurso na abertura da Assembleia-Geral da ONU, o presidente Jair Bolsonaro reinventou o sentido da expressão inglesa “passar batom em um porco”. Bolsonaro maquiou tanto a realidade que é preciso ter um dicionário bolsonarista para decifrar a avalanche de desinformação na fala dele.

Na realidade paralela do bolsonarismo, “estamos há dois anos e oito meses sem qualquer caso concreto de corrupção”. No governo Bolsonaro, não se sabe que nome se dá a negociações de vacinas inexistentes e superfaturadas ou ao uso de bilhões em emendas a aliados sem prestação de contas adequada.

Enquanto o secretário-geral da ONU, António Guterres, usou sua fala para alertar para os perigos da desinformação e dos ataques contra a ciência, Bolsonaro achou por bem rogar praga contra quem critica o chamado tratamento precoce contra a Covid, ou seja, "muitos países e grande parte da mídia".

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, na tribuna da sede das Nações Unidas em Nova York
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, na tribuna da sede das Nações Unidas em Nova York - Eduardo Munoz/AFP

Talvez porque inúmeros estudos padrão ouro demonstrem que ele é ineficaz? Bolsonaro preferiu se apegar a seus próprios dados científicos —“Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial"— e fez uma ameaça: “A história e a ciência saberão responsabilizar a todos”. Faltou mencionar a CPI da Covid.

No universo bolsonarista, o Brasil vive uma pujança econômica inaudita. “Apresento agora um novo Brasil, com sua credibilidade já recuperada. Temos tudo o que o investidor procura: um grande mercado consumidor, excelentes ativos, tradição de respeito a contratos e confiança no nosso governo.”

Bom, o mercado consumidor encolheu —segundo a FGV, a renda média dos brasileiros, incluindo informais e desempregados, está hoje 9,4% abaixo do nível do fim de 2019, com os reflexos da pandemia.

Já a “tradição de respeito a contratos” está prestes a ser quebrada, com a PEC dos precatórios, também conhecida como emenda do calote, ou com o acordão com o STF (Supremo Tribunal Federal) para encontrar recursos para um eleitoreiro Bolsa Família turbinado, o Auxílio Brasil.

“Temos a família tradicional como fundamento da civilização. E a liberdade do ser humano só se completa com a liberdade de culto e de expressão.” No léxico bolsonarista, liberdade de expressão é liberdade para espalhar notícias falsas e incitação à violência sem ser moderado pelas plataformas de internet —como proposto em Medida Provisória, minuta de decreto e, agora, projeto de lei encaminhado pelo governo.

E a liberdade de culto, na realidade bolsonarista, é abrir igrejas e templos presencialmente em pleno pico da pandemia, além de extirpar uma suposta ideologia de gênero das escolas.

“O Brasil já é um exemplo na geração de energia, com 83% advinda de fontes renováveis.” Com reservatórios das hidrelétricas quase vazios e o perigo iminente de racionamento, o Brasil teve de recorrer massivamente a termelétricas —e seria bom atualizar esse número. Segundo reportagem do g1 com base em dados do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), termelétricas geraram 18.625 megawatts-médios em julho, maior quantidade da história e o dobro do verificado em março deste ano.

“Nessas regiões, 600 mil índios vivem em liberdade, e cada vez mais [eles] desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades”, disse o presidente. Na cartilha de Bolsonaro, em “outras atividades” está incluído o garimpo em território indígena, que ele tenta aprovar no Congresso.

Dentro da agenda positiva, Bolsonaro cita a Operação Acolhida, uma iniciativa que recebeu 400 mil venezuelanos, e os vistos humanitários para afegãos. Mas o objetivo é alfinetar a “grave crise político-econômica gerada pela ditadura bolivariana”, omitindo que, hoje, há mais de 2.000 pessoas dormindo nas ruas de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela —não é o melhor exemplo de acolhimento de refugiados.

Mais uma vez, tentou culpar governadores e prefeitos pelo desemprego (que chegou a mais de 14,5%) e pelos preços altos (inflação acumulada se aproxima de dois dígitos). “No Brasil, para atender àqueles mais humildes, obrigados a ficar em casa por decisão de governadores e prefeitos e que perderam sua renda, concedemos um auxílio emergencial de US$ 800 para 68 milhões de pessoas em 2020”. Ao menos desta vez ele não inflacionou o valor do auxílio, como fez em 2020, ao dizer que havia sido de US$ 1 mil.

“As medidas de isolamento e lockdown deixaram um legado de inflação, em especial nos gêneros alimentícios no mundo todo.” Sim, no mundo todo, mas curioso que, entre 33 países das Américas, o Brasil tenha a 5ª maior taxa de inflação. E, nas projeções da OCDE, o clube de que Bolsonaro sonha em ser sócio, o índice de preços ao consumidor no Brasil deve ficar entre os maiores do mundo. Em 2021, somente dois países entre os 19 analisados teriam inflação superior à brasileira, Turquia (17,8%) e Argentina (47%).

Bolsonaro também comemorou o fato de o Brasil ter “um dos melhores desempenhos entre os emergentes”. De novo, é preciso interpretar os "fatos alternativos”.

A projeção de crescimento da economia brasileira em 2022 foi revista de 2,5% para 2,3% pela OCDE. Para 2021, passou de 3,7% para 5,2%. Com esses resultados, o país cresceria abaixo da média mundial tanto em 2021 (5,7%) quanto em 2022 (4,5%). No próximo ano, teriam resultados menores que o do Brasil apenas dois países em uma lista de 20 nações: Japão (2,1%) e Argentina (1,9%).

Para quem esperava o tom tranquilizador da carta-recuo mediada por Michel Temer após as ameaças golpistas do 7 de Setembro, Bolsonaro mostrou que é “impacificável”.

“No último 7 de Setembro, data de nossa Independência, milhões de brasileiros, de forma pacífica e patriótica, foram às ruas, na maior manifestação de nossa história, mostrar que não abrem mão da democracia, das liberdades individuais e de apoio ao nosso governo”, discursou.

Embora grande, a manifestação esteve longe de ser "a maior de nossa história", vide atos contra a ex-presidente Dilma Rousseff e as Diretas Já. Um dos pedidos dos apoiadores do presidente, que hoje são apenas 22% da população, era o fechamento do STF e a intervenção militar, não a democracia.

Não surpreende que Bolsonaro tenha frustrado aqueles que —mais uma vez— esperavam moderação do presidente. Não houve oferta humanitária de vacinas para outros países e promessas mais ousadas na política ambiental nem gestos de pacificação em direção ao presidente americano, Joe Biden. Houve até alfinetadas contra a Prefeitura de Nova York e o governo dos EUA, que exigem vacinação contra a Covid.

“Apoiamos a vacinação, mas nosso governo é contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação à vacina”, disse ele, o único dos líderes do G20 que anunciou não ter se vacinado e que teve de comer na calçada ou em puxadinhos durante a passagem pela cidade americana devido à falta de imunização.

O que, sim, surpreende é a magnitude da dissonância cognitiva do governo ou sua tentativa de reescrever a realidade. Em sua visão paranoico-terraplanista, Bolsonaro afirma acreditar que seu governo é perseguido pela imprensa mundial e que o ambiente e a economia do Brasil nunca estiveram tão bem.

É tudo um problema de relações públicas.

“Venho aqui mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões. O Brasil mudou, e muito, depois que assumimos o governo, em janeiro de 2019”, disse o presidente.

De fato, ele mostrou um Brasil diferente. Por mais que se passe batom no porco, esse Brasil só existe nas campanhas de desinformação do bolsonarismo.

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