'Sucesso' para Biden, retirada do Afeganistão teve voo pirata, tendas lotadas e gente doente

Base aérea americana em Doha chegou a registrar morte de bebê de 19 meses

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Michael D. Shear Lara Jakes Eileen Sullivan
Washington | The New York Times

No último dia de agosto, quando o presidente Joe Biden chamou a remoção aérea dos refugiados em Cabul de "sucesso extraordinário", diplomatas graduados e oficiais militares em Doha, no Qatar, enviaram por email um relatório diário sobre a situação, marcado como "sensível, mas não sigiloso".

As condições em Doha, segundo sua descrição, estavam piorando. Havia quase 15 mil refugiados afegãos amontoados em hangares de aviação e tendas na base aérea de Al-Udeid e no campo As Sayliyah, base do Exército americano no país do Golfo Pérsico.

Perto da base eram mantidas 229 crianças desacompanhadas, incluindo muitos adolescentes que constantemente perturbavam as crianças menores. Havia um "grande número de mulheres grávidas", algumas das quais precisavam de cuidados médicos, e cada vez mais relatos de "problemas gastrointestinais" entre os refugiados.

Família afegã embarca em avião da Força Aérea dos EUA para deixar Afeganistão
Família afegã embarca em avião da Força Aérea dos EUA para deixar Afeganistão - Sargento Donald R. Allen - 24.ago.21/Força Aérea dos EUA via AFP

As tensões estavam incandescentes, segundo o relatório, "devido à permanência prolongada e datas de saída imprevisíveis". Na base do Exército, "homens solteiros, incluindo ex-militares afegãos", estavam irrequietos, "e armas de contrabando foram confiscadas". Nenhuma das bases lotadas estava testando os resgatados para a presença de coronavírus.

Os relatos eram destilações diárias das complexidades e do caos por trás da maior evacuação aérea da história dos EUA, enquanto dezenas de diplomatas, soldados, profissionais de saúde, autoridades de segurança e outras espalhadas pelo mundo tentavam resgatar dezenas de milhares de refugiados.

Fossem quais fossem os planos do governo Biden para uma retirada ordenada, eles se desfizeram quando Cabul caiu em questão de dias, provocando uma mobilização global no último minuto.

Os refugiados se empurraram a caminho dos aviões. Centenas de crianças foram separadas de seus pais. Voos piratas pousavam sem documentação. A seleção de segurança dos refugiados era feita em horas ou dias, e não meses ou anos.

Biden e seus assessores insistiram que a evacuação de Cabul depois que o Talibã tomou a cidade, em 15 de agosto, foi feita da forma mais eficaz possível. Mas emails do Departamento de Estado, documentos dos Serviços de Saúde e Humanos e dos departamentos de Segurança Interna e Defesa, assim como entrevistas com autoridades e defensores dos refugiados, sugerem outra coisa.

As condições em Doha foram relatadas a cada manhã depois que Cabul caiu, em um relatório diário enviado por email para autoridades do Departamento de Estado e militares em nome do brigadeiro-general Gerald Donohue, comandante da base aérea; de Greta Holtz, embaixadora veterana que supervisionou a retirada na cidade; e de John Desrocher, principal diplomata americano no Qatar.

Horas depois do discurso de Biden na terça-feira (31) na Casa Branca, marcando o fim de duas décadas de ocupação, um avião fretado particular de Mazar-i-Sharif, quarta cidade do Afeganistão, chegou à base aérea em Doha —uma das dez estações de escala em oito países— sem aviso, carregando nenhum cidadão americano, mas centenas de afegãos.

A documentação do avião, aparentemente fretado por uma firma de direito de um ex-fuzileiro naval, não esclarecia se seus passageiros mereciam vistos especiais por terem ajudado as tropas americanas.

"Há muitos outros voos 'piratas' que estão buscando as mesmas permissões" de pouso, diziam emails daquele dia. "Temos 300 pessoas em Doha agora que são basicamente párias. A maioria não tem documentos."

Dois dias depois, autoridades de Doha relataram notícias ainda mais duras: uma criança de 19 meses que chegara de Cabul com "problemas preexistentes" morreu na base aérea em meio a temores sobre desidratação, coronavírus e cólera entre os refugiados. Autoridades admitiram as duras condições em Doha, mas dizem que estão trabalhando para melhorá-las —nenhuma quis comentar abertamente.

O número total de resgatados e onde eles estão esperando ainda não está claro, embora Biden tenha dito que mais de 120 mil tinham sido removidos. Na sexta (3), Alejandro Mayorkas, secretário do Departamento de Segurança Interna, disse que cerca de 40 mil pessoas tinham chegado aos EUA em aeroportos perto de Washington e Filadélfia. As autoridades esperam que cerca de 17 mil outras cheguem até a próxima sexta e outros milhares poderão acabar vivendo em uma dúzia de outros países.

As autoridades disseram que os refugiados estão tendo impressões digitais, retratos e informação biográfica sendo enviados a bases de dados federais para eliminar possíveis riscos. Segundo Mayorkas, centenas de máquinas de rastreamento biométrico foram enviadas a 30 países.

Mas documentos não sigilosos intitulados "Missão de Repatriação do Afeganistão 2021" revelam que em alguns casos a informação coletada é isolada: dados de voo estão incompletos ou ausentes, a situação de vistos ou cidadania é desconhecida.

Em 19 de agosto, 226 pessoas em dois voos chegaram ao Aeroporto Internacional Dulles, em Washington. O voo JAV 4825 da Jordan Air incluía 44 cachorros, mas nenhuma informação sobre seus 58 passageiros.

Dez dias depois, 13 voos pousaram em Dulles, carregando 3.842 pessoas, incluindo seis refugiados com diagnóstico de Covid e seis meninos desacompanhados. O voo CMB 581 trazia 240 passageiros, mas registros dão poucos detalhes, como "cerca de três" cidadãos americanos, duas pessoas com mais de 65 anos e um passageiro com Covid. O resto é marcado como desconhecido.

Mayorkas disse que das cerca de 40 mil pessoas que chegaram aos EUA vindas do Afeganistão 22% eram cidadãos americanos e residentes permanentes legais, e o resto, afegãos.

Desespero nos portões do aeroporto

A confusão sobre os refugiados começou antes que eles deixassem Cabul, quando autoridades consulares assoberbadas lutavam para identificar e verificar os que tinham motivos válidos para serem resgatados.

Uma autoridade do Departamento de Estado em Cabul descreveu uma situação desesperadora nos portões do aeroporto, com multidões frenéticas que poderiam "se tornar uma turba rebelde a qualquer momento".

O Talibã mudava seus critérios nos postos de checagem "diariamente, às vezes hora a hora". No início, diplomatas enviaram um código eletrônico para afegãos autorizados a embarcar, mas ele foi compartilhado tão rapidamente que as autoridades não sabiam mais quem deveria entrar.

Essa autoridade definiu a situação como um esforço de improvisação a cada dia.

Outra oficial, veterana de 25 anos no Departamento de Estado, contou que ficou espremida entre forças de segurança o tempo todo no portão, enquanto a segurança afegã atirava paus cravejados de pregos contra a multidão. Os guardas afegãos frequentemente usavam granadas de fumaça e gás lacrimogêneo para tentar dispersar a multidão.

Até 30 crianças desacompanhadas apareciam a cada dia e eram levadas a um prédio de segurança enquanto as autoridades tentavam encontrar seus pais, antes que fossem levadas para Doha sozinhas. Um menino de 13 anos tinha sangue sobre a roupa, porque alguém na multidão tinha sido morto na frente dele.

Essas autoridades descreveram os acontecimentos em Cabul em relatórios separados a jornalistas, mas não puderam ser identificadas sob regras de controle.

Lugares para pousar

Enquanto corria para retirar os refugiados de Cabul, a pergunta mais crítica que o governo Biden enfrentou foi: onde colocá-los?

O assessor de segurança nacional Jake Sullivan disse que o governo previu que precisaria de centros de trânsito. Mas, dias depois do colapso do governo afegão, o Pentágono e o Departamento de Estado correram para garantir acordos com países da Europa e do Oriente Médio, para permitir que os refugiados fossem abrigados temporariamente em dez bases americanas. Ao mesmo tempo, militares começaram o "Projeto Aliados Bem-Vindos", montando abrigos temporários em oito bases militares nos EUA.

A pergunta sobre o que acontecerá a longo prazo com os refugiados que chegam aos EUA é um alvo móvel. Alguns chegaram com pedidos de visto completo em reconhecimento por seu trabalho com militares americanos.

Essas pessoas e suas famílias se tornarão residentes permanentes e poderão ganhar a cidadania. Mas a vasta maioria está recebendo a chamada "condicional humanitária", que permite que vivam nos EUA por um período fixo, na maioria dos casos dois anos. Eles podem ter de solicitar asilo e terão ajuda para encontrar um lar nos EUA enquanto esperam que seus casos sejam processados.

As autoridades dizem que estavam avaliando pedir ao Congresso que aprove legislação para dar um status legal a todos os refugiados, como fizeram os legisladores para os cubanos nos anos 1960 e os refugiados vietnamitas em 1975.

Até quinta (2), mais de 26 mil afegãos que desembarcaram foram levados de ônibus para um espaço cavernoso perto do aeroporto Dulles, incluindo 3.800 só na quarta. As autoridades disseram que os recém-chegados ficaram lá geralmente menos de um dia para processamento —e em alguns casos saíram em uma hora ou duas.

Na quinta à noite, o secretário de Estado, Antony Blinken, soube que muitas pessoas chegaram desidratadas e precisando de cuidados médicos; várias mulheres deram à luz, incluindo uma que teve trigêmeos na quarta. Mais intérpretes foram enviados ao centro para compensar a falta de pessoas que falassem dari ou pashtun.

Crianças corriam pelo labirinto de corredores entre quartos separados por cortinas, onde as pessoas dormiam sob cobertores azuis. Vendo três crianças paradas ao lado, Blinken parou, agachou-se e se apresentou. "Bem-vindas à América, meu nome é Tony", disse, batendo no peito. "Prazer em conhecê-las."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.