Descrição de chapéu África

Militares do Sudão dizem que tomaram o poder por medo de guerra civil

Premiê detido foi levado para casa, e manifestantes voltaram às ruas denunciando golpe

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Guarulhos

Um dia após um golpe de Estado no Sudão interromper um processo de transição para a democracia, os militares tentaram justificar a tomada de poder. O general Abdel Fattah al-Burhan, 61, afirmou nesta terça-feira (26) que o governo democrático foi deposto para evitar uma guerra civil no país da África Oriental.

O premiê Abdallah Hamdok, 65, está agora em casa, de acordo com relatos feitos à agência de notícias Reuters. O líder político havia sido, inicialmente, posto em prisão domiciliar, depois levado para um lugar desconhecido e, na sequência, transferido para a casa do general Burhan.

O tenente-general Abdel Fattah al-Burhan durante pronunciamento um dia após o golpe militar - Ashraf Shazly - 26.out.21/AFP

Principal figura do Exército sudanês, Burhan chefiava o Conselho Soberano, órgão criado em 2019 para guiar o país até eleições gerais e composto por 11 membros –seis civis e cinco militares. Nesta segunda (25), porém, o conselho foi dissolvido, segundo comunicado do próprio general, para que somente militares comandassem o Sudão.

Burhan justificou o temor de caos social com as cenas observadas nas ruas ao longo da última semana, quando milhares se manifestaram em favor da transição democrática e contra a continuidade do poder militar. "Os perigos testemunhados na semana passada poderiam ter levado o país à guerra civil", alegou.

O general afirmou ainda que um novo gabinete de transição será formado, mas que não contará com "políticos tradicionais". Idealizado à mesma época do Conselho Soberano, o gabinete deveria ser o órgão responsável por políticas públicas, leis e diplomacia, enquanto o conselho na prática atuaria provisoriamente como chefe de Estado do país e comandante das Forças Armadas.

Inicialmente chefiado por militares, o conselho liderado por Burhan deveria passar para as mãos de civis após 21 meses, segundo acordado na Carta Constitucional assinada em agosto de 2019. Os militares, no entanto, vinham sinalizando que não pretendiam abrir mão do comando, o que se concretizou com a dissolução do órgão após o golpe de Estado.

A onda de protestos que tomou as ruas da capital Cartum na segunda se manteve nesta terça. Segundo relatos da agência de notícias AFP, as principais palavras de ordem das manifestações acusavam o general Burhan de ter "traído a revolução" de 2019, quando o ditador Omar al-Bashir, no poder por três décadas, foi destituído. O episódio foi o estopim do processo de transição para a democracia, que depois seria institucionalizado com ajuda internacional.

"Não sairemos das ruas até que o governo civil se restabeleça", disse à AFP Hocham al Amin, 32, um engenheiro, em um dos atos na capital. "Depois da malsucedida cooperação entre militares e civis, nunca voltaremos a aceitar uma aliança com o Exército."

Durante o pronunciamento, Burhan negou que a prisão do premiê e de diversos políticos e a dissolução dos órgãos configurem um golpe. "Queríamos apenas corrigir o curso para uma transição. Havíamos prometido [isso] ao povo do Sudão e ao mundo inteiro", disse o general, que prometeu eleições gerais em julho de 2023.

O escritório do premiê Hamdok defendeu, em uma rede social, que ele continua sendo a "autoridade executiva reconhecida pelo povo sudanês e pelo mundo". "Não há alternativa senão as ruas, as greves e a desobediência civil até que as conquistas da revolução sudanesa voltem", dizia a mensagem. ​

O acesso à internet no país continua bloqueado, segundo monitoramento do NetBlocks, organização que acompanha a internet livre pelo mundo. Houve uma restauração temporária após 35 horas de interrupção, o que fez com que usuários pudessem publicar imagens e vídeos das manifestações, mas o acesso foi novamente interrompido.

A autoridade de aviação civil sudanesa anunciou a suspensão de todos os voos no aeroporto internacional de Cartum até sábado (30). O espaço aéreo segue aberto apenas para voos com escalas no Sudão, mas a entrada e saída de passageiros nas aeronaves foi suspensa, segundo autoridades locais.

Diplomatas sudaneses em 12 países, entre eles EUA, China, França e Emirados Árabes Unidos, rejeitaram a tomada de poder e disseram, em comunicado, que "estão do lado da resistência do povo ao golpe". O governo americano também anunciou que suspenderá um pacote de US$ 700 milhões (R$ 3,8 bilhões) em fundos criados para ajudar na transição do país.

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil disse, em nota nesta terça, que "acompanha com preocupação os recentes acontecimentos no Sudão", em especial a declaração do estado de emergência. O Itamaraty pediu a libertação do premiê, mas não caracterizou a tomada do poder como um golpe militar.

"O governo brasileiro encoraja todos os atores políticos sudaneses a retomar o diálogo, a fim de que a ordem constitucional seja restabelecida e a transição política tenha continuidade, atendendo às legítimas aspirações do povo sudanês por paz, democracia e prosperidade econômica."

Já a Rússia, que na semana passada afirmou que os problemas da transição sudanesa para a democracia moravam na "interferência externa", afirmou que os episódios de segunda foram frutos das deficiências do governo de transição. "O povo do Sudão deve resolver a situação no país por conta própria", disse Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin.

A tomada do poder pelos militares foi descrita por analistas como algo previsível não apenas porque figuras como Burhan vinham sinalizando a intenção de não entregar o comando a civis, mas porque representa um já esperado apego dessas figuras ao poder.

Desde que o Sudão se tornou independente da Inglaterra e do Egito, em 1956, foram cerca de 52 anos sob o jugo de governos militares, segundo informações dadas pelo pesquisador Jonas Horner, do think tank International Crisis Group, para a agência AFP.

"O golpe parece uma tentativa das forças de segurança de manter o controle de seus interesses econômicos e políticos e de resistir à mudança para um regime civil", disse Horner.

O Exército sudanês comanda lucrativas empresas no país, em setores como agricultura e infraestrutura. Em 2020, o premiê Hamdok disse que 80% dos recursos públicos estavam fora do controle do Ministério das Finanças, mas não especificou qual parcela é controlada pelos militares.


CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DO SUDÃO

  • 1956: Sudão se torna independente do domínio da Inglaterra e do Egito, que comandavam o país desde o fim do século 19
  • 1958: General Ibrahim Abbud dá o primeiro golpe da República do Sudão, dissolvendo partidos políticos e fechando jornais
  • 1962: Estouram conflitos entre o norte do país, mais simpático ao governo, e o sul, liderado pela guerrilha Anya Nya
  • 1964: Abbud renuncia em meio à pressão crescente
  • 1969: Coronel Gaafar el-Nimeiri lidera novo golpe militar e assume comando do país
  • 1971: Tentativa frustrada de golpe comunista fortalece El-Nimeiri
  • 1972: Tratado de Adis Abeba garante autonomia ao sul do país, governado pelo Anya Nya, e põe fim à primeira guerra civil sudanesa
  • 1983: Em meio ao crescente fundamentalismo, Nimeiri impõe a sharia (lei islâmica estrita); coronel revoga termos do tratado e volta a dividir o sul em províncias, dando início a nova guerra civil
  • 1985: Nimeiri é deposto por conselho militar, que realiza eleições no ano seguinte
  • 1989: Em novo golpe militar, general Omar al-Bashir assume o poder, lidera país com mão de ferro e reintroduz a sharia, que prevê castigos físicos
  • 1996: Bashir é eleito presidente; em 2000, é reeleito
  • 1998: EUA disparam mísseis contra farmacêutica na capital Cartum, afirmando que local fabricava armas químicas
  • 1999: Bashir dissolve Assembleia Nacional em meio a disputa de poder com presidente do Legislativo
  • 2003: Milícias rebeldes se insurgem em Darfur, região de população não árabe no oeste do país
  • 2004: Regime reage em Darfur e Exército ataca população, provocando crise humanitária e onda de refugiados; Colin Powell, então secretário de Estado dos EUA, descreve mortes como genocídio
  • 2005: Novo acordo de paz restabelece autonomia no sul do país, e ex-líder rebelde, Salva Kiir assume Vice-Presidência
  • 2007: Conselho de Segurança da ONU aprova missão de paz em Darfur; crise abre conflito diplomático com o Chade
  • 2009: Tribunal Penal Internacional (TPI) pede prisão de Bashir por crimes de guerra e crimes contra a humanidade em Darfur
  • 2010: Bashir é eleito novamente presidente, em votação contestada; TPI expede segundo mandado de prisão, agora por genocídio
  • 2011: Sudão do Sul ganha independência após votação popular; Salva Kiir torna-se presidente do novo país
  • 2015: Bashir vence, com 95% dos votos, eleição novamente contestada
  • 2019: Bashir decreta estado de emergência e suspende governadores após protestos em massa; em abril, militares depõem ditador após 30 anos no poder e preparam governo de transição
  • 2020: Rebeldes remanescentes de Darfur assinam acordo de paz com governo
  • 2021: Em meio a disputas por poder, militares prendem primeiro-ministro, declaram estado de emergência e afirmam que vão governar até eleições de 2023

Com Reuters e AFP

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.