Poderoso jornal alemão afasta editor após denúncias de assédio

Demissão ocorreu após escândalo respingar na Axel Springer, empresa que tem ambições globais

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Ben Smith Melissa Eddy
The New York Times

Após passar meses minimizando denúncias de envolvimento sexual com funcionárias, o Bild, jornal mais poderoso da Alemanha e um dos maiores da Europa, afastou seu editor-chefe nesta segunda (18).

A demissão ocorreu quando o escândalo começou a atingir a empresa mãe do jornal, Axel Springer, que tem ambições globais. Tabloide de centro-direita que alimentou a insatisfação popular com a chanceler Angela Merkel e as restrições contra a Covid, o Bild demitiu o editor-chefe, Julian Reichelt, depois de o New York Times ter divulgado detalhes sobre o relacionamento dele com uma estagiária.

Em investigação legal independente em 2018, ela disse que Reichelt a chamou a um hotel perto da sede do jornal para fazer sexo e pediu que guardasse segredo sobre um pagamento.

Julian Reichelt, editor demitido do Bild, poderoso jornal alemão, após escândalo sexual - Niels Starnick/Bild

Horas após a demissão de Reichelt, a revista Der Spiegel publicou alegações de que o editor teria abusado do cargo para ter relacionamentos com várias mulheres de sua equipe.

A demissão assinala a chegada tardia do movimento global #metoo à Axel Springer. Chegou no momento em que a empresa alemã está fazendo investimentos importantes no mercado americano, incluindo a aquisição do site Politico neste ano por US$ 1 bilhão.

A Axel Springer enfrentou pressões nos EUA e na Alemanha para explicar duas revelações recentes: o que foi trazido à tona pela investigação sobre a conduta de Reichelt e a resposta de seu CEO, Mathias Dopfner.

Em mensagem de texto a um amigo à qual o New York Times teve acesso, Dopfner pareceu vincular as críticas ao comportamento de Reichelt às posições políticas polêmicas do editor, que descreveu como um baluarte contra o retorno da opressão ao estilo comunista a partir de restrições contra a Covid.

A empresa disse em comunicado que Reichelt “não separou questões particulares e profissionais claramente” e que enganou o conselho de direção. Dopfner, em comunicado, elogiou Reichelt por sua liderança jornalística e por lançar a Bild-TV, uma TV no estilo combativo dos canais a cabo americanos.

Também afirmou que Johannes Boie, que assumiu o lugar de Reichelt, somará “excelência jornalística a liderança moderna”. Reichelt nega ter cometido abusos e não respondeu a pedidos de comentários.

A Axel Springer é uma gigante alemã de mídia que forjou sua identidade como reduto anticomunista na época da Guerra Fria. Hoje sua maior acionista é a firma americana de capital privado KKR.

Para continuar a fomentar uma audiência no século 21, a empresa vinha procurando canalizar o populismo na Alemanha em meio ao crescimento da mídia europeia de direita, ao mesmo tempo conquistando uma geração online global. A aquisição de publicações como Politico e Business Insider, que a Axel Springer comprou por US$ 442 milhões em 2015, constitui parte importante dessa estratégia.

A decisão de afastar Reichelt representa um recuo importante da parte de uma empresa que se orgulha de resistir ao establishment alemão de imprensa mais progressistas.

A Axel Springer já se preparava para enfrentar reações de seus novos funcionários americanos aos relatos sobre a conduta de Reichelt, mas duas pessoas informadas da decisão da empresa disseram que uma tempestade furiosa na mídia alemã intensificou as pressões sobre Dopfner para tomar uma atitude.

Críticos alemães condenaram a empresa em especial por ter ajudado a abafar uma reportagem de um grupo rival, o Ippen, cujos jornalistas disseram em carta que estavam prestes a divulgar detalhes sobre os abusos de poder de Reichelt. “Isso fez o caso ganhar dimensões ainda maiores”, disse Moritz Tschermak, co-autor de um livro sobre o Bild. “De repente virou uma história sobre a liberdade de imprensa.”

Em investigação conduzida na primavera deste ano no hemisfério norte, a Springer disse ter inocentado Reichelt, que pediu desculpas na época por “deslizes” não especificados e permaneceu no cargo.

A empresa pareceu atribuir a reversão de sua postura em parte ao processo legal alemão opaco, divulgando comunicado em que destacou que tomou conhecimento pela mídia de algumas informações novas e não especificadas sobre a conduta de Reichelt, que teria enganado o conselho da empresa.

No comunicado, a Axel Springer disse que vai processar terceiros que alegaram que ela teria tentado influenciar ilegalmente sua investigação de compliance. As alegações teriam sido feitas “com o objetivo aparente de afastar Julian Reichelt de seu cargo e prejudicar o Bild e a Axel Springer”.

Apesar da ameaça aparente, Deirdre Latour, uma porta-voz da empresa, disse que a companhia “não vai perseguir delatores ou quem quer que seja que apresente queixas”. Reichelt tirou licença em março depois de a revista jornalística alemã Der Spiegel ter divulgado que a Axel Springer estaria investigando alegações de abuso de poder e queixas de que ele teria tido relacionamentos com funcionárias.

O editor voltou 12 dias mais tarde, após a investigação, conduzida com ajuda da firma de advocacia Freshfields, concluir que ele havia confundido vida pessoal com profissional, mas não infringira leis. A Axel Springer disse à época que a investigação não encontrou evidências de assédio ou coerção sexual.

Reichelt “cometeu erros”, disse o CEO Dopfner em comunicado em março. “Porém, depois de pesar tudo que o processo de investigação trouxe à tona, consideramos que afastá-lo seria inapropriado.”

Ao voltar, ele foi reconduzido ao cargo com uma co-editora, Alexandra Würzbach, editora da edição de domingo do Bild, que assumira suas funções durante sua ausência.

Na segunda-feira, explicando a decisão de destituir Reichelt como editor-executivo, a empresa citou revelações sobre seu comportamento que teriam “vindo à tona nos últimos dias, após relatos na mídia”.

A pressão se intensificou na Alemanha após a Ippen Media, que publica um grupo de sites além de um jornal impresso rival do Bild, ter decidido, na sexta (15), não publicar sua investigação sobre Reichelt.

Revelado pelo New York Times e depois em carta da equipe investigativa do próprio grupo Ippen, o fato enfureceu jornalistas em Berlim, levando um deles a perguntar ao porta-voz da primeira-ministra Angela Merkel, em entrevista coletiva na segunda, se essa decisão levava o governo alemão a recear que a liberdade de imprensa pudesse estar em risco. O porta-voz Steffen Seibert se negou a comentar.

Mas a autora da investigação, Julianne Loffler, assinou um artigo na segunda-feira pela revista Der Spiegel. O artigo descreveu Reichelt como um homem “obcecado pelo poder” e que teria um padrão de promover e seduzir mulheres jovens no jornal. Segundo a Der Spiegel, os relacionamentos sexuais do editor com mulheres de sua equipe eram do conhecimento geral na Redação do Bild.

A revista levantou dúvidas sobre a investigação da Axel Springer, que prometera anonimato às mulheres que prestaram depoimentos. Apesar disso, segundo a Der Spiegel, uma das profissionais recebera mensagem de um “confidente” de Reichelt recomendando que não falasse com os investigadores.

O mundo editorial alemão é dominado por grandes empresas, comandadas principalmente por homens, nas quais existe relutância profunda em serem vistas como críticas umas às outras. O grupo Ippen citou essa motivação como a razão da decisão de sustar a reportagem no último minuto.

O Frankfurter Rundschau, sediado em Frankfurt, é um dos jornais regionais pertencentes ao Ippen Media que planejava publicar a investigação. O jornal publicou editorial na segunda-feira dizendo que a decisão prejudicou seu relacionamento de confiança com os leitores.

A Associação Alemã de Jornalistas criticou a decisão. Mas jornalistas que discutiram a reportagem também questionaram por que o mundo editorial alemão demorou a ter seu próprio acerto de contas do tipo #metoo e por que foi preciso a mídia americana dar atenção ao assunto para desencadear essa ação.

Enquanto a mídia alemã acompanhava a turbulência na Axel Springer, a equipe do Politico, cuja aquisição pela Springer está prevista para ser finalizada nesta semana, voltava sua atenção a outros assuntos.

Os jornalistas do Politico estudam a possibilidade de formar um sindicato, e os organizadores estabeleceram um prazo de até este mês para angariar o apoio necessário.

Tradução de Clara Allain

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