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Cidade-símbolo dos antivacinas na Itália hoje é epicentro de Covid no país

Trieste registra aumento de casos após protestos contra passaporte de imunização

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Trieste (Itália) | The New York Times

No mês passado, quando a Itália lançou o passaporte de saúde mais rígido e abrangente da Europa, a cidade portuária de Trieste, no nordeste do país, virou o epicentro de protestos. Céticos antivacinas marcharam ao lado de estivadores bradando que a medida infringia seu direito ao trabalho.

Agora, duas semanas mais tarde, Trieste emergiu como epicentro de outra coisa: um surto de Covid ligado àqueles atos, ameaçando sobrecarregar as UTIs e prejudicar a reputação de uma cidade que no passado foi o centro cosmopolita do Império Austro-Húngaro e hoje tem grandes ambições de revitalizar seu porto.

Manifestantes protestam em Trieste contra restrições impostas pelo governo italiano para impedir a disseminação do coronavírus
Manifestantes protestam em Trieste contra restrições impostas pelo governo italiano para impedir a disseminação do coronavírus - Borut Zivulovic - 18.out.21/Reuters

"A situação em Trieste é especialmente preocupante", disse o sanitarista Fabio Barbone, que comanda o esforço anti-Covid na região de Friuli-Venezia Giulia, da qual Trieste é a capital. O presidente da região, Massimiliano Fedriga, evitou rodeios: "É hora de falar com franqueza: chega de idiotice".

Sob a liderança do primeiro-ministro Mario Draghi, a Itália conseguiu em grande medida conter os casos de Covid, depois de ser devastada pela doença no início da pandemia —fato que foi elogiado na cúpula do G20 que o premiê presidiu em Roma no fim de semana passado.

Mas o surto em Trieste deixa claro como uma minoria não vacinada –quer seja por preocupações com a liberdade pessoal, o direito ao trabalho ou teorias conspiratórias infundadas— ainda é capaz de colocar em risco a saúde pública geral e como pode ser difícil levar os resistentes às vacinas a mudar de opinião.

A Itália não é o único país nessa situação. Na Alemanha, um aumento agudo nos casos de Covid e nas hospitalizações levou o ministro da Saúde, Jens Spahn, a alertar sobre "uma pandemia que atinge principalmente os não vacinados e que é enorme". Pacientes não vacinados lotam os leitos em UTIs, levando a chamados para que seja proibido seu ingresso em certos espaços públicos fechados.

Em toda a Europa, que na semana passada foi responsável por quase 60% dos novos casos de Covid no mundo, os níveis de contágio estão ficando tão altos que na quinta-feira (4) a Organização Mundial de Saúde (OMS) aventou a possibilidade de meio milhão de mortes nos próximos três meses.

"A Europa voltou a ser o epicentro da pandemia, o mesmo lugar que ocupávamos um ano atrás", disse Hans Kluge, diretor da OMS na Europa. Kluge atribuiu o aumento grande nos casos em grande medida a níveis insuficientes de vacinação em lugares como a Rússia e ao relaxamento das medidas de precaução sanitária como o uso de máscaras, especialmente no Reino Unido.

Numa manhã recente, na praça Unità d’Italia, palco central de muitos dos protestos públicos em Trieste, Dario Giacomini, líder das manifestações e radiologista que foi suspenso do hospital em que trabalha por se recusar a ser vacinado, estava sentado diante do Caffè degli Specchi. Por não dispor de um Passe Verde, como é conhecido o passaporte de saúde, estava proibido de entrar no café.

Enquanto manifestantes na praça faziam posturas de ioga ou erguiam cartazes dizendo "Trieste chama, a Itália responde", Giacomini criticou o fato de o passaporte de saúde excluir os não vacinados da força de trabalho italiana e "matar socialmente" os céticos antivacinas. Insistiu que o movimento contra o passaporte de saúde se alastraria para todo lugar e que Trieste era a faísca inicial.

Os atos em outras partes do país pararam à medida que a população aceitou o Passe Verde. Em Trieste, porém, as autoridades tiveram que proibir mais manifestações na praça e ameaçar com punições quem desobedece a norma, querendo combater a nova fama da cidade como centro do ceticismo antivacinas.

Alguns habitantes do município já estão fartos. No domingo, o professor de direito Mitja Gialuz, figura de destaque na comunidade, lançou um abaixo-assinado pedindo aos moradores que declarem que acreditam na ciência e na vacina. A petição já recebeu quase 50 mil assinaturas.

Muitos italianos começaram a indagar o que está acontecendo em Trieste, que em vários momentos tem parecido um lugar à parte do resto do país. Depois do papel que exerceu no Império Austro-Húngaro, a cidade foi um lugar central entre impérios e encruzilhada da Itália, Europa Central e Bálcãs.

Na virada do século 20, foi um reduto do movimento italiano para reivindicar terras ditas "devolutas" na península e na outra margem do Adriático. ("Viva l’Italia! Viva Trieste Livre!", bradou Guglielmo Oberdan quando foi levado à forca após tentativa fracassada de assassinar o imperador austro-húngaro em 1882.)

Reflexo de edifícios no Canal Grande de Trieste, na Itália
Reflexo de edifícios no Canal Grande de Trieste, na Itália - Miguel Medina-18.jan.21/AFP

Após a Segunda Guerra, os EUA e o Reino Unido controlaram Trieste para evitar que ela caísse nas mãos da Iugoslávia comunista, devolvendo a cidade à Itália em 1954. Um cartaz com "bem-vindos ao território livre de Trieste" no centro lembra que ainda há quem pense que ela foi anexada ilegalmente pela Itália.

"Trieste sempre foi um lugar diferente", disse Giacomini, que não é natural da região, procurando explicar a atitude independentista da cidade contra os decretos de vacinação de um governo que ele equipara a uma ditadura. Especialistas consideram essa ideia um absurdo.

"As pessoas falam em independência, mas isso não tem nada a ver com o problema", afirmou Piero Delbello, diretor do Instituto Regional de Cultura Ístria, Friuliana e Dálmata, enquanto verificava o Passe Verde de um visitante a seu museu, usado como centro de vacinação durante a gripe espanhola de 1921. "Não procuremos motivos históricos onde eles não existem."

Delbello desconfia que o nível mais alto de infecções em Trieste se deva mais à posição geográfica da região e à fronteira que divide com a Eslovênia. Para as autoridades, a razão do surto de Covid é clara. Valerio Valenti, a principal autoridade policial em Trieste, disse a jornalistas nesta semana que o surto atual está estreitamente ligado aos protestos. Médicos compartilham essa visão.

Os casos novos em Trieste dobraram na semana passada em relação à semana anterior, chegando a mais de 800. As autoridades estão alarmadas com o aumento, que qualificam como exponencial.

As infecções em toda a região vêm crescendo, enquanto o número de testes permanece constante. Os pacientes com Covid passaram a ocupar 18% dos leitos de UTI na região, cruzando um limiar perigoso.

Segundo Fabio Barbone, o pesquisador sanitarista da região, a maior concentração de casos emergiu entre 93 pessoas que se aglomeraram sem máscaras e gritaram palavras de ordem em protestos em Trieste. "Nenhuma dessas pessoas era vacinada", destacou.

As medidas que entraram em vigor no país em 15 de outubro requerem que as pessoas apresentem comprovante de vacinação, um resultado negativo de teste rápido ou um comprovante de recuperação recente de Covid para poderem ir a seus locais de trabalho. O líder dos trabalhadores do porto que protestaram contra a lei é Stefano Puzzer, ativista local que nutre ambições políticas.

Ele mesmo vacinado, Puzzer argumenta ser injusto obrigar pessoas não vacinadas a pagar para trabalhar, ao obrigá-las a custear os próprios testes. Muitos de seus apoiadores destacam que a Constituição italiana começa com as palavras "a Itália é uma república democrática fundada sobre o trabalho".

O governo rejeitou o argumento, dizendo que seria muito caro pagar por milhões de testes e que tal política enfraqueceria seus esforços de vacinação. Mas os protestos, que em alguns casos foram reprimidos com canhões de água, atraíram manifestantes antivacinas de todos os tipos, e um grande protesto marcado para o final de outubro prometia reunir dezenas de milhões de pessoas.

Na véspera do ato, depois de falar com autoridades, Puzzer cancelou o ato, temendo que fosse infiltrado por elementos violentos. "Não venham a Trieste porque é uma grande armadilha", disse ele em redes sociais. Seu apelo levou Giacomini e outros céticos antivacinas a aventar novas teorias conspiratórias sobre infiltração de espiões do governo para incitar violência e sujar a imagem do movimento.

Ciro Mauriello, 29, um manifestante não vacinado que veio da região de Emilia Romagna com um amigo para participar do protesto, antes de ser cancelado, diz acreditar que o Estado pretendia sabotar a manifestação. "Como o 6 de janeiro nos Estados Unidos", disse, afirmando que os democratas planejaram o ataque ao Capitólio para sujar a imagem dos partidários de Trump.

Atrás dele, outros manifestantes brincavam, tentando agarrar uns aos outros para injetar seus companheiros com uma vacina de faz-de-conta. O que muitos deles acabaram pegando foi Covid.

O estivador Fabio Tuiach, ex-vereador de Trieste, membro do partido Liga e do neofascista Força Nova, escreveu no Facebook em 25 de outubro depois de receber o diagnóstico de Covid-19: "Dias atrás estava diante dos canhões de água e passei o dia todo molhado. Acho que, com isso, somado à temperatura do final de outubro em Trieste, foi impossível não ficar doente. Fiz um teste rápido e o resultado foi positivo."

Mesmo assim, insistiu: "Para mim, a Covid só existe na cabeça de quem foi hipnotizado".

Tradução de Clara Allain

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