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Portugal investiga militares por contrabando e tráfico em missão da ONU na África

Soldados teriam participado de esquema criminoso enquanto serviam na República Centro-Africana

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Sónia Trigueirão
Público

A Polícia Judiciária de Portugal levou a cabo nesta segunda-feira (8) uma megaoperação, com o nome Miríade, de combate ao tráfico de droga, ouro e diamantes. No foco da investigação está uma rede criminosa, com ligações internacionais, composta por militares e responsável por lavagem de dinheiro.

Segundo o Público apurou, os suspeitos são militares, comandantes e ex-comandantes, que não têm patentes altas. Suspeita-se de que tenham usado as missões portuguesas sob o guarda-chuva das Nações Unidas, especialmente na República Centro-Africana (RCA), para levar a cabo a atividade criminosa.

Soldados da Minusca patrulham na cidade de Bangassou, na República Centro-Africana - Alexis Huguet - 3.fev.21/AFP

Em comunicado, a PJ informou que foram emitidos cem mandados de busca e detenção de dez suspeitos, na sua maioria antigos militares. Entre os suspeitos está um membro da Guarda Nacional Republicana, que exerce funções no Comando Metropolitano de Lisboa, e um agente da Polícia de Segurança Pública que participaram nestas missões.

Três dos detidos ainda são militares e foram, por isso, levados para a prisão militar de Tomar, durante a tarde. Já os restantes ficam no estabelecimento prisional anexo à PJ. Só depois de serem presentes nas próximas 48 horas a um juiz, em Lisboa, se saberá as medidas de coação a que ficaram sujeitos durante a investigação.

Foram realizadas buscas nas regiões de Lisboa, Funchal, Bragança, Porto de Mós, Entroncamento, Setúbal, Beja e Faro. Um dos alvos das buscas foi o regimento de Comandos, no quartel da Carregueira, em Belas, concelho de Sintra.

Os militares transportavam droga, ouro e diamantes da República Centro-Africana, em guerra, para a Europa, a bordo de aviões militares, cuja carga não é fiscalizada. A investigação apurou que, por exemplo, no que diz respeito aos diamantes brutos, estes eram transportados por via terrestre para Antuérpia e Bruxelas, na Bélgica, onde eram vendidos a preços milionários.

Para lavar o dinheiro, compravam criptomoedas, moedas virtuais transaccionadas na internet sem controle das autoridades financeiras. E recorriam a testas-de-ferro (laranjas) que colocavam as suas contas bancárias à disposição sendo assim incluídos num circuito de ocultação do dinheiro. Em troca disso, os testas-de-ferro chegavam a receber 50% do valor dos depósitos.

Esta investigação começou em 2020 e é dirigida pela 10ª seção do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa. O Ministério Público contou nesta segunda com o apoio de 320 inspetores e peritos da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ nas buscas. A investigação foi acompanhada pelo juiz Carlos Alexandre. Nas buscas estiveram também elementos da Autoridade Tributária.

Reação do governo

O ministro das Relações Exteriores, Augusto Santos Silva, considerou que o que aconteceu não deveria ter acontecido, mas não põe em xeque a imagem das Forças Armadas portuguesas no mundo. "O que digo é que a imagem internacional de Portugal muito beneficia do fato de nós sermos, como gostamos de dizer, um contribuinte líquido para a segurança internacional, e do fato de, em particular nas missões de paz das Nações Unidas, mas também nas missões da Otan e da União Europeia, o papel desempenhado pelos militares portugueses ser unanimemente reconhecido", afirmou.

E acrescentou: "Quer quando fui ministro da Defesa, quer agora como ministro das Relações Exteriores, não ouço de nenhum interlocutor internacional que fale sobre forças portuguesas destacadas em missões de paz internacionais outra coisa senão o pedido que nós continuemos e reforcemos a nossa presença".

Também o secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional, Jorge Seguro Sanches, comentou o assunto, dizendo que "as investigações são muito importantes" para a credibilidade das instituições militares. "Logo que houve algumas suspeitas sobre esta situação, os órgãos próprios passaram a fazer essa investigação e este resultado está agora a funcionar", referindo desconhecer dados mais específicos sobre a operação policial em curso.

"Aquilo que nós observamos é, com toda a tranquilidade, as instituições a funcionar, a esclarecer aquilo que têm de esclarecer e a actuar, se for caso disso, nesta situação", considerou. Questionado sobre se esta situação afeta a imagem das Forças Armadas e de Portugal, Jorge Seguro Sanches respondeu: "Não, não afecta. Se houver alguma situação que deva ser esclarecida, ela tem de ser esclarecida. Se não fosse esclarecida é que poderia afetar..."

Denúncia chegou ao Estado-Maior em 2019

Em comunicado, o Estado-Maior-General das Forças Armadas informou que, em dezembro de 2019, foi reportado ao comandante da 6ª Força Nacional Destacada (FND) na República Centro-Africana (RCA) o eventual envolvimento de militares portugueses no tráfico de diamantes. O comandante relatou a situação ao Estado-Maior, que, por sua vez, entregou a denúncia à Polícia Judiciária Militar para investigação.

Refere o mesmo comunicado que a PJM fez a respectiva denúncia ao Ministério Público, que nomeou como entidade responsável pela investigação a Polícia Judiciária civil. O Estado-Maior confirma que o que está em causa de momento é a possibilidade de alguns militares que participaram nas FND na RCA terem sido utilizados como correios no tráfico de diamantes, ouro e estupefacientes. Estes produtos foram alegadamente transportados nas aeronaves de regresso das FND a território nacional.

Além da denúncia imediata, o Estado-Maior diz que mandou reforçar os procedimentos de controle e verificação à chegada dos militares das FND e respectivas cargas e que, neste momento, os "inquéritos militares e respectivas consequências estão pendentes das investigações em curso, com o cuidado de não interferir neste processo, ainda em segredo de justiça".

"Uma vez esclarecidas as responsabilidades, as Forças Armadas tomarão as devidas medidas, sendo absolutamente intransigentes com desvios aos valores e ética militar. As Forças Armadas repudiam totalmente estes comportamentos contrários aos valores da instituição militar."

Ministro da Defesa diz que informou a ONU

O ministro da Defesa revelou, por sua vez, que informou as Nações Unidas em 2020 das suspeitas de tráfico que recaíam sobre alguns militares portugueses em missão na República Centro-Africana, garantindo que estes já não se encontravam naquele território.

"Informei [a ONU] de que a denúncia tinha ocorrido, que o assunto tinha sido encaminhado para as nossas autoridades judiciais e que todos os elementos pertinentes tinham sido entregues para investigação judiciária. E também, naturalmente, que os militares sob suspeita já não estavam na RCA e que portanto podiam ter toda a confiança em relação às nossas Forças Armadas como sempre tiveram", adiantou João Gomes Cravinho, em declarações à agência Lusa.

O governante garantiu ainda que "aqueles cujos nomes tinham sido indicados como suspeitos já não regressaram à RCA em missões posteriores", vincando que "os militares denunciados já não estavam na RCA na altura da denúncia".

GNR confirma detido

Já a Guarda Nacional Republicana confirmou que foi detido pela Polícia Judiciária um guarda-provisório em formação, desde Junho de 2021, no 44º Curso de Formação de Guardas em Portalegre, o qual ingressou na formação proveniente das Forças Armadas.

Portugal está presente na República Centro- Africana desde o início de 2017, no quadro da Minusca (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana). A 6ª FND chegou à RCA em Setembro de 2019 e teve a função de Força de Reação Rápida. Dela fizeram parte 180 militares, na sua maioria paraquedistas, pertencendo 177 ao Exército e três à Força Aérea.

Os membros da 6ª Força Nacional Destacada na República Centro-Africana foram condecorados no dia 27 de fevereiro de 2020, antes de serem substituídos pela 7ª FND em março, numa cerimônia realizada na capital, Bangui, num momento em que o destacamento desta unidade estava a terminar naquele país. A atribuição das medalhas aos 180 capacetes azuis da Força de Reação Rápida portuguesa ao serviço da missão das Nações Unidas na RCA (Minusca) decorreu numa cerimônia organizada pela ONU, em M'poko, Bangui. Nesta altura estavam na RCA também 14 elementos da Polícia de Segurança Pública.

Segundo um comunicado da Minusca, divulgado na altura, os 180 militares portugueses "estiveram encarregues de proteger civis, recolher informações, responder às crises envolventes, conduzir patrulhas de longo alcance e de operações de controlo de áreas e vigilância".

Durante os seis meses de operação, a 6ª FND, ainda de acordo com o mesmo comunicado, "interveio em cenários terrestres e aéreos em vários locais, tendo participado em operações e escoltado altas autoridades".

Veículo da missão da ONU na República Centro-Africana - Barbara Debout - 21.set.21/AFP

Segundo o Público apurou, esta investigação envolve militares que fizeram parte da 6ª FND, assim como de anteriores. Cada missão dura seis meses e estarão em causa práticas criminosas que foram passando de uma força para a seguinte que a veio a render.

Segundo dados do Estado-Maior, atualmente estão empenhados na RCA 180 militares portugueses no âmbito da Minusca. Também na RCA, mas no âmbito da missão de treino da União Europeia, estão atualmente empenhados 25 militares.

Desde 2013 que a RCA vive no caos e na violência, depois da queda do ex-presidente François Bozizé por vários grupos armados que se juntaram, formando uma aliança com o nome de Séléka, o que suscitou a oposição de outras milícias, agrupadas, por seu turno, sob a designação anti-Balaka.

Este território tem sido palco de confrontos entre estes grupos, que obrigaram quase um quarto dos 4,7 milhões de habitantes da RCA a abandonarem as suas casas.

Com Lusa

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