Emirados Árabes Unidos chegam aos 50 anos como potência regional

País se movimenta no Oriente Médio unindo cosmopolitismo e repressão política implacável

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Dubai, Abu Dhabi e Sharjah

Os Emirados Árabes Unidos chegam aos 50 anos nesta quinta-feira (2) em plena expansão de seu poder regional, projeto que reflete a consolidação de um dos pontos mais paradoxais de todo o Oriente Médio.

Essa faixa costeira na península Arábica, do tamanho aproximado de Pernambuco, sempre viveu espremida entre a aridez do deserto às suas costas e as possibilidades que o golfo Pérsico lhe ofertava: até o século 19, pirataria e comércio; depois, pérolas e petróleo; e agora, negócios, logística e turismo.

O resultado é uma combinação inusitada de tolerância religiosa e intolerância política, de um cenário futurista de arranha-céus impossíveis de Dubai e a onipresença da areia em cada pedaço de solo que não está coberto pela intervenção humana.

O tradicional espetáculo com chafarizes em frente ao Burj Khalifa (dir.), maior prédio do mundo, no centro de Dubai
O tradicional espetáculo com chafarizes em frente ao Burj Khalifa (dir.), maior prédio do mundo, no centro de Dubai - Mohammed Salem - 30.set.21/Reuters

Ação essa que é tocada por um exército quase invisível de trabalhadores mais pobres de países asiáticos, como prova o paquistanês Mahmoud, 32. Ele, que hoje dirige um carro de frota que atende clientes particulares e corridas da Uber, chegou a Dubai em 2014 para trabalhar na construção civil.

"Ganhava o equivalente a US$ 1.500 [R$ 8,5 mil, na cotação atual] por mês. Era pouco, então mandava quase tudo para a minha família e vivia às custas da construtora, que nos acomodava em galpões e dava comida duas vezes por dia. Agora as coisas estão melhores, ganho duas vezes mais, às vezes três", diz, pedindo reserva sobre seu sobrenome.

Não que o salário banque os custos exorbitantes que se apresentam a visitantes e moradores de áreas centrais, expostos a um verdadeiro shopping de luxo ao ar livre, embora seja suficiente para sobrevivência básica. Se a gasolina obviamente é barata, coisa de R$ 4 o litro, uma cerveja de 500 ml sai por até R$ 80.

Nas largas e manicuradas avenidas de Dubai e Abu Dhabi, aqui e ali é possível ver Mahmouds em potencial, fugindo do sol incandescente sob viadutos nos intervalos de trabalho. E haja obras: estima-se que um terço dos guindastes de construção pesada do mundo esteja nos Emirados.

Um observador casual notaria que boa parte dos brilhantes prédios que sobem por todo canto parecem integrar uma bolha imobiliária. Segundo a Nakheel, a segunda maior incorporadora de Dubai, famosa pela construção da ilha artificial em forma de palmeira Palm Jumeirah, não.

A empresa afirma que a taxa de ocupação de seus principais projetos é de quase 100%, mas não informa o quanto disso é para investimento —russos e indianos abastados são ávidos frequentadores de Dubai.

O esforço mostra a preocupação dos Emirados em deixar para trás o petróleo, fator unificador do país após ter sido processado em Abu Dhabi nos anos 1960. Em Dubai, segundo maior entre os sete emirados que compõem o país, é o turismo e o setor de serviços que puxam a economia.

Mas ela, apesar de ser a estrela arquitetônica com o maior prédio do mundo, o Burj Khalifa, só representa 25% dos US$ 410 bilhões do PIB anual dos Emirados. A capital, Abu Dhabi, responde por 60%, quase tudo vindo de hidrocarbonetos. Os outros Estados somam o restante da produção econômica.

Apesar de toda a propaganda sobre tecnologias sustentáveis, a escala do artificialismo de parque temático para turista rico dos Emirados desafia a noção de que os petrodólares bancarão uma economia mais verde. Mesmo emirados menos conhecidos, como Sharjah, são imersos em aparelhos de ar-condicionado até em pontos de ônibus.

O foco em serviços tem buscado colocar o país na posição de entreposto comercial entre o Oriente Médio, a Índia e a Europa, com ramificações até a América Latina. As suas companhias aéreas principais, Emirates e Etihad, fazem o papel de embaixadoras globais.

"Temos as melhores condições para a instalação de empresas do mundo. Aqui não há impostos, enquanto em Singapura eles são de 22%", afirmou o presidente da zona franca Abu Dhabi Global Market, Mark Cutis.

O fato de o país todo funcionar como uma grande empresa, com o governo dominando ou participando de todos os empreendimentos, curiosamente parece favorecer a abertura aos estrangeiros. Por outro lado, aumenta o escrutínio sobre práticas comerciais, com acusações de opacidade e monopólios.

Até o Brasil se posiciona por lá. Em novembro, uma delegação do governo paulista liderada pela agência InvestSP fechou parcerias locais, como com o gigante de logística DP World. Na mão contrária, fundos locais investem pesado por aqui. Com ou sem limitações à frente, nada parece deter a obstinação dos emires. Hoje, os Emirados são uma potência regional tão ativa que deixaram a sombra da mãe de todas as monarquias do Golfo, a Arábia Saudita, buscando agenda própria.

"Os Emirados são o país mais flexível e pragmático, embora às vezes imprevisível, do Oriente Médio. Isso é evidente ao analisar sua abordagem dos problemas na Síria e no Iêmen", afirma Hilal Khashan, professor de ciência política da Universidade Americana de Beirute.

No caso da ditadura de Bashar al-Assad, em guerra civil desde 2011, Abu Dhabi inicialmente apoiou rebeldes contrários ao regime. Depois, colaborou com o financiamento da presença militar russa que ajudou a estabilizar o conflito em favor do governo. Agora, busca uma acomodação com o antigo rival.

No mês passado, aproveitou a gigantesca feira mundial Expo Dubai 2020 para promover encontros ministeriais com os sírios, e seu chanceler visitou Damasco. Os EUA protestaram, mas de forma protocolar, já que dificilmente não sabiam do arranjo.

As boas relações com os americanos, que mantêm uma base aérea no país, contudo, não impediram Abu Dhabi de ser acusada de deixar a China construir uma instalação militar dentro de uma área de porto por lá —o que foi negado. A Rússia de Vladimir Putin é outro parceiro constante.

No Iêmen, foram à guerra contra rebeldes pró-Irã com os sauditas, mas há dois anos deixaram o conflito e trabalham para encerrá-lo. Ao mesmo tempo, escalaram suas divergências com Riad na condução da política de preços do petróleo. "O sucesso de Abu Dhabi em reabilitar o regime de Assad e ajudar a acabar com o conflito fará dos Emirados a mais significante potência regional árabe", diz Khashan.

Na mira, musculatura para enfrentar o temido Irã do outro lado do golfo: o acordo de paz com Israel, no ano passado, trouxe ganhos econômicos junto à perspectiva de frente ampla contra os aiatolás xiitas.

O preço dessa proatividade, além das condições questionáveis de trabalho para os Mahmouds de sua economia, também se reflete na política interna.

O paradoxo é tremendo. Embora haja graus diferentes de liberalidade de costumes nos emirados —com o tradicionalista Sharjah não aceitando com bons olhos as turistas com roupas curtas que passeiam por Dubai, por exemplo—, de forma geral o país é mais aberto do que a Arábia Saudita ou o Irã.

Isso se deve ao fato de que a escola sunita oficial das monarquias é a Maliki, mais tolerante. Há aulas sobre aceitação de costumes ocidentais e respeito a outras religiões nas escolas. Ao mesmo tempo, escândalos de costumes, como o da princesa de Dubai mantida em cárcere privado, seguem em pauta.

Por outro lado, isso antagonizou ao longo dos anos o governo com grupos como a Irmandade Muçulmana, que tinha forte presença na região até ser declarada ilegal em 1994, o que abriu o caminho para repressão política mais acentuada, que pegou não só os islamistas radicais, mas qualquer agente de dissenso.

"Em termos de estrutura econômica e disciplina social, é um dos países mais avançados do mundo. Politicamente, os Emirados são incrivelmente repressivos, considerando qualquer mudança uma ameaça existencial ao regime", diz Khashan.

Ele cita cadeias para presos políticos em condições terríveis no deserto e a extrema vigilância que marca o país —tente tirar uma fotografia perto de uma área militar para descobrir a rapidez da polícia local. Algo bem diferente do país que se apresenta ao mundo na cintilante Expo, que custou US$ 34,6 bilhões.

Com tudo isso, o cinquentenário da independência dos Emirados do Reino Unido, de quem os sete pequenos reinos eram tributários desde o século 19, marca um fascinante —e algo assustador— experimento político e social, único em suas características.

O jornalista Igor Gielow viajou a convite da InvestSP

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