Desertor que deixou Coreia do Norte e decidiu voltar enfrentou dívidas e solidão no Sul

Seul reconhece falhas em ter deixado ex-ginasta cruzar zona desmilitarizada e em acolhimento a refugiados

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Choe Sang-Hun
Seul | The New York Times

Em novembro de 2020, um ex-ginasta norte-coreano escalou cercas de arame farpado de 3 metros de altura para entrar na Coreia do Sul, sem ser detectado. Quando o país descobriu a invasão, começou uma caçada, e o homem só foi encontrado no dia seguinte, 800 metros ao sul da fronteira mais fortemente armada do mundo.

Foi um dos momentos mais embaraçosos para os militares sul-coreanos em vários anos.

No último dia de Ano-Novo, segundo as autoridades, o homem humilhou os militares de novo, agora fazendo a viagem reversa: subindo as mesmas cercas e cruzando a zona desmilitarizada para voltar à Coreia do Norte.

Visitantes passam por cerca decorada com fitas pedindo por paz e pela reunificação das Coreias no parque Imjingak, próximo à zona desmilitarizada na fronteira entre os dois países - Jung Yeon-je - 1º.jan.22/AFP

O feito extraordinário não só salientou as falhas de segurança do Sul na zona tampão de 4 quilômetros (conhecida pela sigla DMZ em inglês), como levantou a pergunta desconcertante de por que alguém arriscaria a vida cruzando-a duas vezes.

A zona desmilitarizada é equipada com cercas de arame farpado, campos minados e sentinelas armados. Poucos norte-coreanos que desertam a cruzam diretamente —a maioria passa pela China—, e é ainda mais raro que um desertor retorne por ali.

"Sentimos muito por causarmos preocupações à população", disse o general Won In-choul, presidente do Estado-maior conjunto da Coreia do Sul, a legisladores nesta quarta (5). "Faremos todos os esforços para que não haja recorrência de incidentes semelhantes." Na mesma audiência, o ministro da Defesa, Suh Wook, confirmou que Seul acredita que o homem que cruzou a fronteira foi o ex-ginasta que desertou em 2020.

O governo não divulgou seu nome, mas outros desertores o identificaram como Kim Woo-joo, 29. Eles disseram que o rapaz tinha poucos amigos, e seu motivo para voltar para casa ainda é um mistério. Legisladores especularam que ele seria um espião, mas o governo do presidente Moon Jae-in disse que não encontrou evidências disso.

Uma série de lapsos o permitiu passar pela DMZ, admitiu o tenente-general Jeon Dong-jin, que liderou a investigação do Exército sobre a falha de segurança.

Ele foi primeiramente captado por uma câmera de segurança militar por volta das 13h de sábado (1º), caminhando na direção de uma área ao sul da DMZ, na província oriental de Gangwon, proibida para civis. Uma advertência foi transmitida por alto-falantes, mas os militares não tomaram mais medidas depois que o homem pareceu mudar de curso e rumar para uma aldeia próxima.

Seis horas depois, ele estava subindo na primeira cerca alta na borda sul da DMZ. Três câmeras captaram a cena, mas um soldado que monitorava as transmissões em tempo real de nove câmeras em uma única tela de computador não o viu. Sensores na cerca dispararam um alarme, mas uma equipe de reação rápida decidiu que não havia nada errado.

Horas depois, na calada da noite, os dispositivos de observação térmica militares detectaram o homem no interior da DMZ, a caminho da Coreia do Norte.

Dos cerca de 34 mil norte-coreanos que fugiram para a Coreia do Sul, 30 reapareceram misteriosamente no Norte na última década. Alguns teriam sido chantageados para voltar; outros fugiram de acusações criminais no novo país.

Outros ainda teriam voltado porque depois de crescer na sociedade altamente regimental da Coreia do Norte, não conseguiram se adaptar à vida hipercompetitiva no Sul, onde desertores são muitas vezes tratados como cidadãos de segunda classe. O pouco que se sabe sobre a vida de Kim nesse período recente sugere que ele pode se enquadrar nessa categoria.

Outros desertores dizem que o ex-ginasta, como a maioria dos que fazem essa mudança, adotou um novo nome: Kim Woo-jeong. Ele parece ter tido uma vida dura nas duas Coreias, segundo autoridades e legisladores que receberam informações de autoridades militares e da inteligência.

Como todos os desertores, Kim foi interrogado pelo governo sul-coreano ao chegar. Disse que fugiu do Norte para escapar de um padrasto abusivo. Na época, ele pesava 50 quilos e tinha cerca de 1,30 metro.

Àquela altura, cruzar a fronteira com a China —rota habitual para refugiados— já tinha se tornado quase impossível por causa da pandemia. Para manter o coronavírus fora de seu território, a Coreia do Norte intensificou os controles, colocando guardas na região sob ordens de "atirar para matar". Mas Kim cruzou a DMZ, onde, segundo autoridades sul-coreanas, suas habilidades de ginasta o ajudaram a subir cercas.

Na Coreia do Sul, a vida parece ter sido difícil. Ele fez poucos amigos, segundo as autoridades, e aparentemente nunca se reunia com vizinhos. Encontrou trabalho em serviços de limpeza, cujos empregados atuam principalmente à noite, em prédios de escritórios vazios. Desde domingo, quando surgiram os primeiros relatos de seu retorno para o Norte, ninguém se apresentou para dizer que o conhecia pessoalmente.

Kang Mi-jin, norte-coreana que vive em Seul, disse que as primeiras experiências de um desertor podem ser cruciais. "O primeiro emprego que conseguem e como são tratados nele é muito importante", diz. "É aí que percebem se seu sonho tem eco na realidade."

Seus primeiros amigos geralmente são outros norte-coreanos, que conhecem durante o programa de reassentamento do governo, de 12 semanas. Antes da pandemia, quando até 3.000 desertores chegavam por ano, as classes ficavam cheias. Mas, com a fronteira chinesa trancada, só 229 norte-coreanos fugiram para o Sul em 2020, ano em que Kim desertou.

"Ele teve poucos colegas de classe e poucos amigos", conta Ahn Chan-il, líder de um grupo de desertores em Seul. As igrejas sul-coreanas, onde muitos encontram apoio, estiveram sob restrição na pandemia.

Se Kim sofria de pobreza e solidão no Sul, não era o único desertor nessas condições. Quase um quarto dos desertores norte-coreanos —seis vezes a média nacional— recebem subsídios do governo para necessidades básicas, porque estão na faixa de renda inferior. Dentre eles, os que ganham salários recebem 70% da média nacional, segundo uma pesquisa com 407 desertores realizada no ano passado pelo Centro de Dados para Direitos Humanos Norte-Coreanos, em Seul.

Cerca de 35% deles relataram sofrer depressão, e 19% disseram ter pensado em voltar para o Norte, principalmente porque sentiam saudade da família e de suas cidades, segundo a pesquisa.

Uma das razões pelas quais muitos desertores infelizes suportam a vida no Sul é que eles podem economizar dinheiro e enviá-lo para os parentes no Norte por meio de intermediários na China, que geralmente cobram uma taxa de 30%. Mas os empregos temporários, como os de muitos deles, foram os primeiros a ser cortados pelas firmas com o agravamento da pandemia.

Morando sozinho em um apartamento minúsculo de US$ 117 (R$ 666) por mês no norte de Seul, Kim recebia US$ 418 por mês (R$ 2.370) em assistência social do governo. Ele raramente cozinhava, economizava em gás, água e eletricidade e tinha contas atrasadas de aluguel e seguro-saúde, segundo a agência de notícias sul-coreana Yonhap.

"Ajudamos os refugiados norte-coreanos a se reassentarem quando chegam, mas temos falhado em ajudá-los a encontrar emprego e tornar sua vida sustentável aqui", disse Park Soo-hyun, secretário de comunicações públicas do governo, nesta semana.

Para alguns desertores, a transição para o Sul é como a vivida por um prisioneiro libertado depois de muitos anos, que não consegue se readaptar ao mundo exterior, segundo Lee Min-bok, antigo refugiado norte-coreano. "Eles são estranhos à liberdade repentina, achando-a mais difícil do que a vida na Coreia do Norte, que é essencialmente uma prisão", diz.

O choque cultural é especialmente difícil para os poucos que cruzam a DMZ. Muitos desertores passam anos vivendo na China, que é muito mais aberta ao mundo do que a Coreia do Norte. Quando se mudam para o Sul, têm alguma ideia do que esperar.

Norte-coreanos reunidos na praça Kim Il-sung para reunião do Partido dos Trabalhadores do país - Kim Won-jin - 5.jan.22/AFP

Nesta quinta-feira, a Coreia do Norte não disse nada sobre o retorno de Kim. O país costuma usar desertores que retornam para fazer propaganda, lançando vídeos e artigos nos quais descrevem uma vida infernal no Sul capitalista.

Kim deixou poucos rastros para trás. Na cerca por onde cruzou, os investigadores encontraram pegadas leves e pedaços de penas, que aparentemente caíram de seu casaco rasgado pelo arame farpado. Os repórteres que foram a sua casa a encontraram vazia, com um cobertor dobrado cuidadosamente colocado do lado de fora para o coletor de lixo pegar.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Erramos: o texto foi alterado

A conversão para reais do valor de um apartamento em Seul citado na reportagem foi feita incorretamente. Na verdade, US$ 117, na cotação atual, correspondem a R$ 666, não a R$ 1.006.

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