Nazistas planejaram em 90 minutos 'solução final' contra 11 milhões de judeus no Holocausto

Reunião do alto escalão do regime de Hitler, que articulou ação antissemita na Europa, completa 80 anos

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Katrin Bennhold
Berlim | The New York Times

No dia 20 de janeiro de 1942, 15 funcionários de alto escalão na hierarquia nazista se reuniram numa mansão à margem do lago Wannsee, na extremidade oeste de Berlim. Foram servidos petiscos, acompanhados de conhaque. A pauta abrangia um ponto apenas: "Os passos organizacionais, logísticos e materiais para uma solução final da questão judaica na Europa".

Planejar o Holocausto levou apenas 90 minutos.

Oitenta anos após a infame Conferência de Wannsee, que mapeou o Holocausto meticulosamente, a eficiência burocrática do processo ainda é profundamente assustadora.

As minutas anotadas naquele dia e depois datilografadas em 15 páginas não fazem menção explícita a assassinatos. Empregam termos como "evacuação", "redução" e "tratamento" –e dividem a tarefa entre diferentes departamentos governamentais e seus "especialistas pertinentes".

Sobreviventes do Holocausto caminham pelos portões de Auschwitz, antigo campo de concentração nazista na Polônia - Janek Skarzynski - 27.jan.20/AFP

"Quando você lê aquele protocolo, é de gelar o sangue", comentou Deborah Lipstadt, conceituada estudiosa do Holocausto. "É tudo expresso numa linguagem muito camuflada. Mas então você olha a lista dos países e o número de judeus que eles planejaram matar. Eles queriam eliminar 11 milhões de pessoas. Tinham planos muito grandes."

O aniversário daquela reunião fatídica tem significado especial num momento em que restam cada vez menos sobreviventes do Holocausto e que o antissemitismo e a ideologia da supremacia branca estão ressurgindo na Europa e nos Estados Unidos, ao lado de ataques a judeus e membros de minorias étnicas.

No sábado passado (15), um homem fez um rabino e três membros de sua congregação reféns numa sinagoga no Texas. Na Alemanha, onde crimes de antissemitismo também vêm aumentando, as autoridades alertam publicamente que o terrorismo e extremismo de direita constituem a maior ameaça à democracia.

Hoje a mansão de três andares na beira de um lago, que foi usada como casa de hóspedes da SS [polícia do regime nazista] e abrigou a Conferência de Wannsee, parece praticamente igual, vista por fora. Afastada da rua e cercada por jardins amplos, ela saúda os visitantes com um pórtico frontal majestoso e quatro estátuas de querubins dançando no telhado.

As autoridades alemãs ocidentais se debateram durante décadas com a questão sobre o que fazer com o edifício. Enquanto sobreviventes pressionavam o governo a converter a mansão em um lugar para se aprender sobre o Holocausto e documentar os crimes dos perpetradores, as autoridades foram adiando a decisão. Algumas diziam temer que a mansão pudesse tornar-se um local de peregrinação de velhos nazistas; outras sugeriam que o edifício fosse demolido, "para que não reste nada desta casa de horrores".

Joseph Wulf, combatente da resistência judaica que escapou de uma marcha da morte de prisioneiros de Auschwitz e depois da guerra tornou-se um historiador respeitado, liderou a campanha inicial para converter a mansão em um memorial e instituto histórico. Sobre sua mesa de trabalho ele fixou um bilhete para si mesmo, escrito em hebraico, sobre os seis milhões de judeus massacrados pelos nazistas: "Lembre-se! 6 milhões".

Para muitas pessoas o aniversário da Conferência de Wannsee é menos marcante que a data da libertação de Auschwitz ou a do levante no gueto de Varsóvia, que enfocam as vítimas do terror nazista. Mas ele se destaca como uma data rara para voltar as atenções aos perpetradores do Holocausto, documentando a máquina genocida do Estado nazista.

O anfitrião da conferência naquele dia de janeiro de 1942 foi Reinhard Heydrich, o poderoso chefe do serviço de segurança e da SS, que Hermann Goring, o braço direito de Adolf Hitler, encarregara de arquitetar uma "solução final" e organizá-la com outros departamentos governamentais e ministérios.

Foi pedido a Adolf Eichmann, chefe do departamento de "assuntos judaicos e expulsões" do Ministério do Interior, que mais tarde organizaria as deportações para os campos de extermínio, que redigisse a ata da reunião. Apenas uma das 30 cópias de seu protocolo de 15 páginas, marcado em vermelho na primeira página como "sigiloso", sobrevive até hoje. Foi descoberta entre os arquivos do Ministério do Exterior por soldados americanos após a guerra.

O protocolo de Eichman resumiu o escopo da tarefa proposta, fazendo uma tabulação estatística detalhada das populações judaicas na Europa, incluindo também a União Soviética, Inglaterra, Irlanda e Suíça.

"Com autorização prévia apropriada do Führer, a emigração agora deu lugar à evacuação dos judeus para o Leste como outra solução possível", destacou o protocolo. "Aproximadamente 11 milhões de judeus serão levados em consideração nesta solução final da questão judaica."

Em seguida o documento passou a explicitar com detalhes que forma assumiria essa solução final.

"Sob supervisão apropriada, os judeus devem ser utilizados para trabalho no Leste de maneira adequada", diz o documento. "Em grandes colunas de trabalho, separados por sexos, os judeus capazes de trabalhar serão despachados para essas regiões para construir estradas. Nesse processo, uma grande parcela deles vai sem dúvida ser eliminada pela redução natural. Aos que permanecerem será preciso dar tratamento adequado, porque eles inquestionavelmente representam as partes mais resistentes."

"Os judeus evacuados serão levados primeiramente, grupo por grupo, aos chamados guetos de trânsito, de onde serão transportados para o Leste", prossegue o texto. "Quanto à maneira na qual a solução final será realizada naqueles territórios europeus que hoje se encontram sob nosso controle ou influência, foi sugerido que os especialistas pertinentes do Ministério do Exterior realizem consultas com o oficial responsável pela Polícia de Segurança e o SD [serviço de inteligência]".

Era a linguagem de burocratas. Mas nunca houve nenhuma dúvida quanto ao que o documento estava propondo: "a eliminação completa dos judeus", conforme escreveu em seu diário Joseph Goebbels, o propagandista chefe de Hitler, depois de ler a ata.

Oitenta anos após a Conferência de Wannsee e 77 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, as testemunhas das atrocidades nazistas estão morrendo.

Quando Lipstadt, 74, professora de história judaica moderna e estudos do Holocausto na Universidade Emory, começou a lecionar sobre o Holocausto, mais de três décadas atrás, era fácil encontrar sobreviventes que pudessem conversar com seus alunos.

"Quando eu queria que um sobrevivente viesse à minha aula, eu me perguntava: ‘Preciso de um sobrevivente de um campo ou um que passou a guerra escondido? Quero alguém do Leste Europeu? Quero um alemão que viveu sob as leis contra judeus por oito anos, até ser deportado? Quero alguém da resistência clandestina?’", ela recordou. "Hoje eu apenas torço para encontrar alguém que tenha condições de saúde para vir."

Tradução de Clara Allain

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