Descrição de chapéu Mundo leu União Europeia

Erros em filme lembram que guerra nem sempre se presta a interpretações simplificadas

Empobrecer conflito historicamente seria fazer pouco dos milhões de cadáveres que ele deixou

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São Paulo

Os filmes de guerra correm frequentemente o risco de construir roteiros aproximativos. Não chegam a mentir abertamente. Mas têm comichões quando lidam com a verdade histórica. É mais ou menos o que acontece com "Munique, no Limite da Guerra" (2021), em cartaz na Netflix.

O filme, dirigido pelo alemão Christian Schwochow, a partir do romance do britânico Robert Harris, mantém-se com uma certa dificuldade dentro das margens do verossímil.

Vejamos um exemplo sutil, que está no pouco caso que o livro e o filme fazem do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, que em 1938 assinou com o governo de Berlim acordo de reconhecimento dos direitos que o Terceiro Reich supostamente teria sobre os sudetos da Tchecoslováquia.

Jannis Niewohner e August Diehl em cena do filme 'Munique: No Limite da Guerra' - Divulgação Netflix

Sudetos eram colinas que poderiam indistintamente pertencer à Alemanha, à atual República Tcheca ou à Polônia. Adolf Hitler prometeu a Chamberlain que se contentaria apenas com a posse dessas terras. No entanto, e pela lógica, para satisfazer a sede alemã por "espaço vital’, seria igualmente preciso entregar, já naquele momento. a Silésia polonesa ou a Alsácia francesa.

Hitler tinha uma fome infinita por territórios, e isso só Chamberlain não viu —não por ser ingênuo ou ignorante, mas por acreditar que a diplomacia preservaria a paz. Para ele, o ditador alemão era guiado por uma racionalidade na condução da política externa, que lhe imporia invariavelmente limites.

Meses depois da posse dos sudetos, os alemães invadiram a Polônia e eclodia a Segunda Guerra Mundial. Winston Churchill foi convocado para chefiar o governo britânico e se seguiram cinco anos de "sangue, suor e lágrimas", até a vitória aliada na Europa, em maio de 1945.

Veja bem. Churchill enxergou mais longe e arriscou bem mais. No entanto, Chamberlain tinha sua própria lógica, que poderia ter levado a um cessar-fogo precoce, o que economizaria milhões de vidas. É fácil enxergar a guerra apenas pelo espelho retrovisor de Churchill.

Outro momento em que o filme traz uma verdade bem aproximativa. Dois amigos estudaram juntos em Oxford. Estão agora em lados opostos naquele eclodir de um novo conflito. Os dois ex-camaradas não se encontravam havia oito anos. E mesmo assim aquele que trabalha para os alemães encaminha ao que trabalha para os ingleses documentos que comprovariam a canalhice do Fure.

A recomendação é a de não assinar a concessão sobre os sudetos. A entrega dos documentos expõe seu autor a um ato da mais alta traição. Mas será que ele correria tamanho risco, em nome de uma ética para a qual Hitler foi tão indiferente? Digamos que isso é pura conversa para boi dormir. Chamberlain se deixou enganar pela ideia de que a Alemanha não desejava a guerra, e não porque não acreditou em documentos do inimigo que lhe caíram em mãos.

Embora não seja esse o foco histórico do filme, algo semelhante aconteceu em Moscou em 23 de agosto de 1939, com a assinatura de um pacto de não agressão pelos chefes da diplomacia alemã, Joachim von Ribbentrop, e seu equivalente da União Soviética, Viatcheslav Molotov. Acontece que Josef Stálin estava de olho na jugular de Hitler e vice-versa.

O pacto não apenas deixou de ditar comportamentos diplomáticos e militares, como também se tornou um dos documentos mais inúteis e risíveis da história. Lembrem-se do estrago feito pelos nazistas, bem depois, com o cerco a Stalingrado.

Outra ideia corrente é a de que esse tipo de acordo, em lugar de ser feito para ser cumprido, seria útil por permitir que se ganhasse tempo. Mas não foi bem assim. Em suas legendas finais, o filme "informa" que, com a espoleta dos sudetos neutralizada, os aliados ganharam alguns meses para se armar. A verdade, no entanto, é que o fator tempo foi benéfico apenas aos alemães.

Eles estavam enfraquecidos na Tchecoslováquia e puderam montar um dispositivo militar que finalmente usaram contra os próprios tchecos, ao se apoderarem, por exemplo, das fábricas da Skoda.

Mais uma razão para crer que a guerra –e sobretudo a Segunda Mundial– é de uma riqueza que nem sempre se presta a interpretações simplificadas. O que existem são as constantes, como a expansão territorial do Reich e o início de sua asfixia agrícola, quando os soviéticos reconquistaram as planícies férteis da Ucrânia.

De certo modo, a guerra é em termos narrativos um bem plural. Mas não podemos, sem empobrecê-la historicamente, reduzi-la a fatos sentimentais ou a uma soma de histórias de amor. Seria fazer pouco dos milhões de cadáveres que o conflito deixou.

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