Descrição de chapéu Rússia União Europeia

Scholz age na crise da Ucrânia para tentar abandonar imagem apagada na Alemanha e fora dela

Após 2 meses no cargo, premiê busca mudar estilo discreto após perder popularidade e ser criticado por posição dúbia

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Milão

Quando assumiu como premiê da Alemanha em dezembro, Olaf Scholz tinha uma lista pouco desdenhável de possíveis dificuldades. Além de substituir a poderosa Angela Merkel, havia a Covid-19 em uma onda recorde de casos e a crise climática, com ambiciosas metas a serem alcançadas. Mas logo outro tema despontou na Europa: a crise na Ucrânia opondo Rússia e o Ocidente.

O aumento na tensão não era exatamente inesperado, posto que Vladimir Putin começou a mobilizar tropas em novembro, mas a reação do governo alemão colocou Scholz em uma posição inicial vista, interna e externamente, como excessivamente retraída —reforçando, de certa forma, a imagem de tecnocrata previsível que o político tinha na campanha.

Maior democracia da Europa, maior economia da zona do euro e localizada estrategicamente entre os dois polos da crise, a Alemanha também tinha, sob a carismática Merkel, um histórico de mediação com a Rússia de Putin —com mais episódios de condescendência do que de confronto.

O premiê alemão Olaf Scholz (à dir.) em encontro com o ucraniano Volodimir Zelenski na conferência de seguraça de Munique, neste fim de semana - Sven Hoppe - 19.fev.22/Pool/Reuters

Em janeiro Berlim falou em pagar o preço para retaliar Moscou em caso de invasão na Ucrânia, mas os riscos econômicos certamente são ponderados. Cerca de metade do gás consumido no país é importado dos russos e, entre os dois países, o novo gasoduto Nord Stream 2 espera as tensões passarem para entrar em operação —o americano Joe Biden disse que isso não vai acontecer em caso de ataque, mas não foi secundado integralmente pelo alemão.

Ante a postura dúbia, no começo do mês a Alemanha foi chamada de "hipócrita" pela Letônia, Scholz, de "invisível’’ pela imprensa, e sua aprovação caiu 17 pontos percentuais, para 43%.

"Houve um problema de comunicação. Scholz tem um perfil mais conciso e discreto, mas já percebeu que é preciso explicar constantemente as ações do governo. Foi uma curva de aprendizagem profunda", avalia Henning Hoff, do Conselho Alemão de Relações Exteriores em Berlim, onde é editor-executivo da revista Internationale Politik Quarterly.

Depois de virar hashtag com a pergunta "Onde está Scholz?", o premiê inaugurou uma conta oficial no Twitter no último dia 13 (além da pessoal), como parte de uma tentativa de virada em seu estilo. Depois de ter visitado Joe Biden, em Washington, ele foi a Kiev e Moscou em dias consecutivos, repetindo os passos que o francês Emmanuel Macron dera dias antes.

Ao lado de Volodimir Zelenski, disse que a questão da entrada da Ucrânia na Otan "não estava colocada na prática". Em Moscou, a sua chegada se seguiu a um anúncio por Putin do início da retirada de parte das tropas que se exercitavam perto das fronteiras do vizinho —refluindo um pouco as tensões que dias depois voltariam a se acentuar.

Neste sábado (19), o premiê recepcionou outros líderes na anual Conferência de Segurança de Munique, na qual falaram sobre a crise o britânico Boris Johnson ("O plano que estamos vendo é para algo que pode ser realmente a maior guerra na Europa desde 1945"), a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris ("Estamos falando de guerra onde não há guerra há 70 anos") e o próprio Zelenski.

Se nada de mais substantivo resultou da ação do alemão, Julia Friedrich, pesquisadora do Global Public Policy Institute, vê dois outros pontos que sinalizaram uma mudança na postura de Scholz. Em entrevistas concedidas após o encontro com Putin, ele comentou o fechamento da ONG de direitos humanos Memorial, em dezembro, e a prisão de Alexei Navalni, principal opositor ao presidente russo, chamando-a de "condenação incompatível com os princípios do Estado de Direito".

"Com sua ida a Moscou, Scholz se tornou visível e usou essa chance para ser mais claro do que realmente é. Em vez de insinuar, nomeou esses temas", avalia Friedrich, especialista no conflito entre Rússia e Ucrânia.

Hoff destaca outro momento da passagem por Moscou. Ao repetir que a entrada da Ucrânia na Otan não está na pauta, Scholz emendou: "Não sei por quanto tempo o presidente [Putin] pretende ficar no cargo. Tenho a sensação de que será por um bom tempo, mas não para sempre". Como escreveu Constanze Stelzenmüller, do Instituto Brookings, no jornal Financial Times, não é todo dia que alguém chama Putin de ditador em sua própria cara, ainda que implicitamente; ele está no poder desde 1999.

"Scholz assim sugere que não vê Putin como um governo russo normal, mas como um tipo de regime autocrático —o que de fato ele é", afirma Hoff.

Por outro lado, segundo Friedrich, o premiê manteve a posição ambígua em relação ao Nord Stream 2, sem ter citado claramente o gasoduto ao dizer que possibilidades de sanções serão consideradas. "É possível interpretar isso de forma positiva, que as ações serão duras quando a hora chegar, ou negativa, de que está tentando evitar uma declaração sobre o projeto porque, de algum modo, procura mantê-lo."

A questão é delicada também dentro da coalizão que sustenta Scholz —formada pelo seu partido, o SPD (social-democrata), pelos Verdes e pelos liberais do FDP. A legenda ambientalista se declarava contrária ao gasoduto mesmo antes da eleição, e no próprio SPD reside um grande constrangimento.

Dias antes de Scholz iniciar suas viagens, foi anunciado na Alemanha que o ex-premiê Gerhard Schröder (1998-2005) estava sendo nomeado para o conselho de administração da estatal energética russa Gazprom. Também social-democrata, o político já definiu Putin como um "democrata impecável".

Apesar das tensões, os analistas avaliam que a coalizão se mantém sem grandes abalos. "O modo como os três partidos estão unidos vai melhor do que o esperado. Eles hoje se mostram determinados em evitar que questões internacionais ou domésticas levem a uma crise no governo", analisa Hoff. O "semáforo" (alusão às cores das legendas, vermelho, verde e amarelo) é a primeira coligação tripla a governar a Alemanha desde o pós-guerra.

No plano interno, Scholz ainda espera uma recuperação com boas notícias ligadas ao combate à Covid. Logo após voltar de Moscou, ele anunciou que restrições como o passe vacinal e o uso de máscaras devem ser revogadas gradualmente até 20 de março.

Mas outro dos desafios de sua lista inicial ainda tem tido resultados menos positivos a vender. Com o compromisso de transformar a Alemanha em um país neutro em carbono até 2045, o ministro Robert Habeck (Economia e Ação Climática) já disse, no mês passado, que dificilmente as metas para este e o próximo ano serão alcançadas. A descarbonização da economia é vista como oportunidade de o governo Scholz imprimir uma marca, distanciando-se de Merkel.

No plano externo, além das ações na crise da Ucrânia, é esperado que Berlim adote uma abordagem mais crítica em relação à China —que recentemente selou sua aliança com Moscou contra o Ocidente. "É difícil para a Alemanha continuar com essa postura supercautelosa, com uma política externa tão focada na economia. Acho que a nova ministra Annalena Baerbock [Relações Exteriores, dos Verdes] está levando para essa direção", diz Friedrich.

Caso Macron se reeleja na França em abril, Scholz veria sair fortalecido alguém que é ao mesmo tempo rival na posição de líder europeu (para ocupar o vácuo de Merkel) e aliado para a ideia de um continente soberano. "São ambições mais fortes. Merkel foi uma administradora de crises fantástica, mas não alguém que realmente deu grandes passos à frente —a não ser que fosse realmente preciso", diz Hoff.

Resta saber se a situação na Ucrânia continuará atropelando os planos de Scholz.

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