Mais de 1 milhão de afegãos já deixaram o país desde a volta do Talibã

Europa teme nova crise migratória, e colapso econômico é agravado com ajuda internacional escassa

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Christina Goldbaum Yaqoob Akbary
Zaranj | The New York Times

De seu esconderijo numa ravina no deserto, sob o ar frio, os migrantes avistavam as luzes brancas da fronteira iraniana no horizonte. Muitos haviam gasto as últimas economias com comida e juntado dinheiro de parentes na esperança de escapar da derrocada econômica do Afeganistão.

Agora, olhando para a fronteira, enxergavam a tábua de salvação: trabalho, dinheiro, comida.

"Não existe outra opção para mim. Não posso voltar", diz Najaf Akhlaqi, 26, enquanto "coiotes" vasculham a paisagem enluarada à procura de patrulhas do Talibã. Ele se põe de pé rapidamente quando ouve os gritos de alerta para o grupo sair correndo.

Cerca de 30 afegãos em uma caminhonete durante viagem de três horas até a fronteira com o Paquistão
Cerca de 30 afegãos em uma caminhonete durante viagem de três horas até a fronteira com o Paquistão - Kiana Hayeri - 19.nov.21/The New York Times

Desde que os Estados Unidos retiraram suas tropas e o Talibã assumiu o poder, o Afeganistão mergulhou numa crise econômica que levou ao limite milhões de pessoas que já sobreviviam com dificuldade.

As fontes de renda desapareceram, a fome absoluta se espalhou e a ajuda externa não consegue chegar devido às sanções impostas pelo Ocidente aos líderes do grupo fundamentalista.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse no mês passado que mais de metade da população enfrenta "níveis extremos" de fome. "A vida diária dos afegãos virou um inferno congelado."

Sem alívio em vista para o futuro próximo, centenas de milhares de pessoas já fugiram para países vizinhos. Segundo pesquisadores de migrações, entre outubro e o final de janeiro, mais de 1 milhão de afegãos apenas do sudoeste do país partiram por uma das duas principais rotas de migração para o Irã.

Organizações humanitárias estimam que entre 4.000 e 5.000 pessoas estejam entrando no país persa a cada dia. Estimativas são de que o Afeganistão tenha 38 milhões de habitantes.

Muitas optam por partir devido à crise econômica imediata, mas a urgência é agravada pela perspectiva de um governo de longo prazo do Talibã, que inclui restrições impostas às mulheres e o medo de represálias. "Estamos vendo um aumento exponencial no número de pessoas que deixam o Afeganistão por essa rota, especialmente considerando como a viagem é árdua nos meses do inverno", diz David Mansfield, que estuda a migração afegã. Ele estima que até quatro vezes mais afegãos deixaram o país rumo ao Paquistão e ao Irã por dia no mês passado, em comparação com janeiro do ano passado.

O êxodo assusta muitos em toda a região e na Europa, onde políticos temem uma repetição da crise dos migrantes de 2015. Nela, mais de 1 milhão de pessoas, em sua maioria sírias, buscaram asilo, provocando reação popular negativa. Muitos temem que uma enxurrada de afegãos chegue às fronteiras da União Europeia na primavera, quando a temperatura fica mais amena e a travessia de rotas nevadas, mais fácil.

No outono passado, determinada a conter os migrantes na região, a UE prometeu mais de US$ 1 bilhão em ajuda humanitária ao Afeganistão e a vizinhos que abrigam afegãos que deixaram seu país.

"Precisamos de novos acordos e compromissos para poder dar assistência a uma população civil extremamente vulnerável", disse o premiê da Noruega, Jonas Gahr Store, em declaração à reunião do Conselho de Segurança da ONU no mês passado. "Temos que fazer todo o possível para evitar outra crise migratória e outra fonte de instabilidade na região e fora dela."

Mas doadores ocidentais ainda não resolveram questões complicadas sobre como cumprir suas obrigações humanitárias para com os afegãos comuns sem fortalecer o novo governo do Talibã.

Nos últimos meses, líderes do grupo apelaram a autoridades ocidentais para reduzir o arrocho sobre a economia afegã, fazendo promessas sobre educação para meninas e atendendo a outras condições impostas pela comunidade internacional. Com o agravamento da situação humanitária, os EUA anunciaram exceções a sanções e no mês passado prometeram mais US$ 308 milhões em assistência, elevando o total de ajuda do país a US$ 782 milhões desde outubro.

Mas, segundo analistas, há limites ao que a ajuda externa pode fazer em um país em colapso. Os afegãos que precisam desesperadamente de trabalho provavelmente vão continuar a procurá-lo fora de seu país.

Agachado no meio do grupo no deserto, Akhlaqi preparou-se para uma corrida desesperada: 1,5 quilômetro de trincheiras de terra revolvida, um muro com 4,5 metros de altura, coroado por arame farpado, e uma área extensa de vegetação rasteira cheia de forças de segurança iranianas. Ele contou ter atravessado a fronteira 19 vezes nos últimos 30 dias. A cada vez foi detido e devolvido para o lado afegão.

Policial sob o governo anterior, Akhlaqi escondeu-se em casas de parentes por medo de represálias do Talibã. Quando as parcas economias secaram, ele começou a ir de cidade em cidade em busca de um trabalho novo, mas não havia um disponível. Assim, em novembro, procurou "coiotes" na província de Nimruz para ir ao Irã. "Tenho medo dos guardas de fronteira, mas aqui eu não posso ficar."

Mesmo antes da tomada do poder pelo Talibã, os afegãos já eram responsáveis pelo segundo maior número de pedidos de asilo na Europa, atrás da Síria, e por um dos maiores contingentes mundiais de refugiados e candidatos a asilo –cerca de 3 milhões de pessoas, a maioria vivendo no Irã e no Paquistão.

Muitos escaparam passando por Nimruz, canto remoto do sudoeste do Afeganistão que há décadas é um paraíso de "coiotes" e traficantes. Em sua capital, Zaranj, afegãos de todo o país lotam hotéis na avenida principal e se reúnem em volta de barraquinhas de kebab, falando sobre a viagem que têm pela frente.

Aguardando em fila para subir numa picape, Abdul, 25, chegara no dia anterior de Kunduz, cidade do norte do Afeganistão que é um centro comercial e foi devastada nos combates do verão passado durante a ofensiva-relâmpago do Talibã. Depois da tomada do poder pelo grupo, as pessoas passaram a guardar o pouco dinheiro que tinham, e a loja de Abdul ficou vazia. Ele passou a tomar empréstimos para alimentar a família, endividando-se cada vez mais. Finalmente, decidiu que partir era a única opção.

"Não quero deixar meu país, mas não tenho outra escolha", disse, pedindo para ser identificado apenas pelo nome, temendo represálias. "Não haverá futuro aqui."

Com a situação econômica se agravando, líderes talibãs têm procurado lucrar com o êxodo, regulamentando o negócio lucrativo do tráfico de pessoas. Um funcionário sentado num carro recolhe um "imposto" de cada veículo que se dirige ao Paquistão: mil afeganis (cerca de US$ 10).

O grupo também estava taxando quem passava pela rota migrante principal escoltado por "coiotes", mas depois de denúncias em setembro de que um "coiote" teria estuprado uma menina, o Talibã mudou de tática e passou a reprimir o caminho que passa pelo deserto.

Transportar pessoas todas as noites requer malabarismos delicados. Primeiro o "coiote" faz um trato com um guarda de fronteira iraniano de baixo escalão para permitir a travessia de um número determinado de migrantes. Em seguida, um comparsa leva os migrantes dos hotéis para um esconderijo no deserto.

Quando o sol se põe, ele e os sócios dirigem por horas, vasculhando a área para detectar patrulhas do Talibã e, uma vez que o caminho esteja livre, levam os migrantes do esconderijo para a fronteira.

Atravessar a divisa é apenas o primeiro obstáculo que os afegãos precisam transpor. Desde a chegada do Talibã ao poder, Paquistão e Irã aumentaram as deportações, avisando que suas economias frágeis não conseguirão dar conta de um influxo de migrantes e refugiados. Nos últimos cinco meses de 2021, mais de 500 mil migrantes que entraram nesses países ilegalmente foram deportados ou retornaram voluntariamente, temendo ser deportados, segundo a Organização Internacional para as Migrações.

Tradução de Clara Allain

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