Guerra que Kremlin tentou disfarçar vira dura realidade para russos

Mortes de soldados abalam famílias, e repressão a dissidentes aperta, mas alguns veem invasão como inevitável

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Ivan Nechepurenko Anton Troianovski
Sochi (Rússia) | The New York Times

Em 23 de fevereiro, Razil Malikov, motorista de tanque do exército russo, ligou para sua família e disse que voltaria em breve; os exercícios militares de sua unidade na Crimeia estavam prestes a terminar.

Na manhã seguinte a Rússia invadiu a Ucrânia, e Malikov não deu mais notícias. Na segunda-feira (28), a Ucrânia publicou um vídeo de um soldado capturado em sua unidade, pedindo desculpas por ter participado da invasão.

"Ele não tinha ideia de que poderiam mandá-lo para a Ucrânia", disse o irmão de Malikov, Rashid Allaberganov, em entrevista por telefone da região de Bashkortostan, no oeste da Rússia. "Todo mundo está em estado de choque."

Tanque russo é incendiado próximo a corpo não identificado de soldado durante combate em Kharkiv, na Ucrânia
Tanque russo é incendiado próximo a corpo não identificado de soldado durante combate em Kharkiv, na Ucrânia - Sergey Bobok - 27.fev.2022/AFP

A realidade da guerra está se revelando em toda a Rússia.

Na quarta, o Ministério da Defesa anunciou pela primeira vez um número de militares russos mortos no conflito. Embora o número de baixas em tempo de guerra seja notoriamente inconfiável —e a Ucrânia situou o total de russos mortos na casa dos milhares—, os 498 que Moscou reconheceu nos sete dias de combates é um total maior que o registrado em qualquer de suas operações militares desde a guerra na Tchetchênia, que marcou o início do mandato do presidente Vladimir Putin, em 1999.

Os russos, que há muito evitavam se envolver com a política, agora estão percebendo que seu país está travando um conflito mortal, enquanto o Kremlin fica cada vez mais agressivo na tentativa de moldar a narrativa. Sua repressão em câmera lenta às liberdades tornou-se um turbilhão de repressão ultimamente, com os últimos vestígios de imprensa livre enfrentando a extinção.

Nesta semana, os legisladores propuseram uma sentença de 15 anos de prisão para pessoas que postarem "falsidades" sobre a guerra, e circulam rumores sobre fechamento de fronteiras ou a imposição da lei marcial. O Ministério da Educação programou uma videoaula para ser exibida em escolas de todo o país na quinta-feira que descreve a guerra contra a Ucrânia como uma "missão de libertação".

Em Moscou, o escritório regional do Comitê das Mães de Soldados da Rússia tem recebido 2.000 ligações por dia desde a última quinta-feira.

"A primeira pergunta dos pais é: O que aconteceu com meu filho?", disse Alexander Latynin, um funcionário do comitê. "Ele está vivo?"

Aproveitando as preocupações das famílias russas, a Ucrânia se apressou a divulgar o fato de que muitos jovens soldados russos estão morrendo ou sendo feitos prisioneiros —realidade que os militares russos não reconheciam até domingo (27), o quarto dia da guerra. Agências do governo ucraniano e voluntários publicaram vídeos de prisioneiros de guerra russos desorientados, dizendo que não tinham ideia de que fariam parte de uma invasão até pouco antes de ela começar, e fotografias e imagens mostraram corpos de soldados russos espalhados pelas ruas e campos.

Os vídeos estão chegando diretamente a alguns russos. Yevgeniya A. Ivanova, por exemplo, identificou um amigo dela, Viktor A. Golubev, que apareceu num dos vídeos. Nele, Golubev disse que "se sente culpado por suas ações erradas" em solo ucraniano e pede a Putin "que encontre um compromisso para evitar a guerra".

Para alguns russos, o número de vidas humanas é motivo suficiente para se opor à guerra. O grupo ativista OVD-Info, que contabiliza prisões, registrou pelo menos 7.359 russos detidos durante sete dias de protestos em várias cidades do país.

"É a terceira década do século 21, e estamos vendo notícias sobre pessoas queimando em tanques e prédios bombardeados", escreveu Alexei Navalny, líder da oposição preso, em um post de rede social na quarta-feira. Ele pediu que os russos continuem atuantes, apesar da repressão policial fulminante. "Não vamos 'ser contra a guerra'. Vamos lutar contra a guerra."

Figuras da elite russa também continuaram a se manifestar. Lyudmila Narusova, membro da câmara alta do Parlamento, disse ao canal de televisão independente Dozhd no domingo que soldados russos mortos na Ucrânia estavam "insepultos; cães selvagens roendo corpos que, em alguns casos, não podem ser identificados porque estão queimados".

"Não me identifico com os representantes do Estado que se manifestam a favor da guerra", disse Narusova. "Acho que eles mesmos não sabem o que estão fazendo. Eles estão seguindo ordens sem pensar."

Mas o descontentamento não mostrou sinal de afetar a campanha de Putin. O ataque russo à Ucrânia se ampliou, com fortes combates relatados na cidade portuária de Mariupol, no Mar de Azov. O governo sinalizou que apenas intensificaria sua repressão contra os críticos da guerra —incluindo aqueles que a chamaram de "guerra" em vez de, na expressão anódina do Kremlin, "operação militar especial".

"Indivíduos que cometem falsificações devem ser punidos da maneira mais severa", disse Vasily Piskaryov, parlamentar veterano do partido de Putin. "Eles estão desacreditando as ações absolutamente justas e compreensíveis de nossas Forças Armadas."

A punição proposta por ele: 15 anos de prisão. O Parlamento, que é controlado pelo Kremlin, votará a lei na sexta-feira.

Alguns temiam que Putin pudesse ir ainda mais longe, reprimindo a dissidência em uma extensão nunca vista na Rússia desde os tempos soviéticos. Tatiana Stanovaya, que estuda Putin há muito tempo, escreveu que era "mais do que lógico" esperar que os legisladores nesta semana aprovem a imposição da lei marcial para bloquear a internet, proibir todos os protestos e restringir a saída de russos do país.

Tal especulação, alimentada pela rapidez com que o Kremlin estava se movendo para bloquear o acesso a meios de comunicação individuais e prender manifestantes, levou um número crescente de russos a fugir do país.

A Echo of Moscow, principal estação de rádio de tendência liberal da Rússia, foi retirada do ar na terça-feira (1) pela primeira vez desde a tentativa de golpe soviético de 1991. Membros importantes do Dozhd, o único canal de televisão independente que resta na Rússia, deixaram o país na quarta depois que o acesso a seu site foi bloqueado.

"Está claro que a segurança pessoal de alguns de nós está ameaçada", escreveu Tikhon Dzyadko, editor-chefe do canal, explicando por que decidiu partir "temporariamente".

Também havia evidências de que, embora a guerra tenha pegado muitos russos de surpresa, um número significativo passou a aceitá-la como inevitável ou imposta à Rússia por uma Otan agressiva. A crise econômica desencadeada pelas duras sanções do Ocidente reforçou essa narrativa para alguns. Na quarta, o rublo atingiu novas mínimas quando mais empresas, como Siemens e Oracle, anunciaram que reduziriam suas operações na Rússia, e o Banco Central ordenou que a bolsa de valores de Moscou permanecesse fechada na quinta-feira pelo quarto dia consecutivo.

Em um shopping center de Moscou na quarta, um jovem casal na fila para sacar dinheiro em um caixa eletrônico disse que era contra a guerra. No entanto, eles afirmaraam que a maneira como o mundo os punia por isso também não era justa, considerando que os Estados Unidos tinham travado suas próprias guerras nas últimas décadas sem sofrer sanções internacionais severas.

"Assim como você pode criticar o governo, pode criticar os países ocidentais", disse Maksim Filatov, 25, gerente de um bar de narguilé. "Quando houve situações análogas em outros países envolvendo os Estados Unidos, não houve tais ataques, e eles não levaram o país à crise."

E o Comitê de Mães de Soldados, apesar de ser uma testemunha em primeira mão da tragédia causada pela guerra, decidiu apoiá-la, segundo Latynin, o funcionário do órgão. Ele repetiu as palavras de Putin, que na semana passada descreveu sua "operação militar especial" como "autodefesa".

"Entendemos que nenhum conflito armado ocorre sem vítimas", disse Latynin. "Mas esse foi um passo necessário, porque era impossível continuar assim."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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