Reino Unido amplia ação para receber refugiados da Ucrânia, mas esbarra em burocracia

Programa paga R$ 2.300 mensais a famílias que receberem imigrantes que fogem do conflito contra a Rússia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Milão

Após semanas de críticas internas e externas pela condução da crise de refugiados causada pela guerra na Ucrânia, o Reino Unido adotou novas medidas para responder à fuga de civis que já envolve mais de 3,1 milhões de pessoas.

Depois de anunciar um programa restrito a ucranianos que tenham familiares residentes no país, o governo lançou nesta semana o "Casas para Ucrânia", esquema de acolhimento patrocinado pelo Estado.

As ações, porém, têm despertado alertas de organizações especializadas, que apontaram alcance limitado, aspectos burocráticos incompatíveis com a urgência da situação e a possibilidade de colocar os próprios imigrantes em risco.

Homenagem à Ucrânia é feita perto da embaixada do país em Edimburgo, capital da Escócia - Andy Buchanan - 10.mar.22/AFP

Um dos pontos mais criticados é a exigência de um visto especial, em contraste com a política de portas abertas da União Europeia. O bloco, do qual o Reino Unido se retirou há dois anos, adotou mecanismo inédito que, entre outras medidas, libera a entrada em seu território mesmo para refugiados ucranianos que não tenham visto ou passaporte.

A primeira resposta britânica após a invasão russa foi dada no dia 4 de março, com a criação de um visto especial, exclusivo para ucranianos com familiares no Reino Unido. Inicialmente, o processo de obtenção do documento envolvia, assim como para um visto tradicional, o agendamento de uma etapa presencial, para coleta de impressões digitais e reconhecimento facial.

No mesmo dia, a Associação de Advogados de Imigração (Ilpa, na sigla em inglês) se manifestou contra o procedimento, justificando que os guichês do governo estavam fechados em Kiev, o que forçaria o deslocamento dos refugiados para outras cidades.

Como resultado, postos para obtenção do visto em países vizinhos, como a Polônia, viram surgir filas de pessoas esperando sob neve. Em Calais, na França, de onde partem balsas para Dover, na Inglaterra, cerca de 600 ucranianos tiveram, nos primeiros dez dias de março, a entrada negada por agentes britânicos de fronteira, segundo o jornal The Guardian. O ministro do Interior francês descreveu o cenário como "falta de humanidade".

Além da dificuldade de conseguir agendamento, outro gargalo era a necessidade de recolhimento da biometria. Diante das cenas de refugiados sendo barrados e em resposta a críticas internas, o governo atualizou as regras e eliminou a exigência da etapa presencial.

Desde a terça-feira (15), refugiados com passaporte ucraniano válido podem começar e finalizar o pedido de visto pela internet e, em caso de aprovação, cruzar a fronteira com a carta enviada pelo departamento de imigração. A coleta da biometria passou a ser realizada após a entrada no Reino Unido.

Para a Anistia Internacional, a mudança foi insuficiente. "O processo ainda está cheio de burocracia, com pessoas desesperadas e exaustas sendo obrigadas a fornecer certidões de nascimento, comprovantes de relacionamento e residência, tudo traduzido para o inglês", disse Sacha Deshmukh, responsável pela seção inglesa da organização.

Desde o início da crise, o governo britânico reluta em abrir mão do visto, alegando razões de segurança —como a possibilidade de russos ou extremistas cruzarem as fronteiras infiltrados.

"As verificações de segurança e biometria são vitais para manter os cidadãos britânicos seguros e para garantir que estamos ajudando aqueles que realmente precisam, principalmente porque tropas russas estão se infiltrando na Ucrânia", declarou, no fim de fevereiro, a ministra do Interior Priti Patel.

Em meio a críticas vindas inclusive de membros do Partido Conservador, o primeiro-ministro Boris Johnson endossou, na semana passada, a necessidade de fronteiras controladas para os refugiados. "Somos um país muito generoso. Mas não podemos ter um sistema em que as pessoas possam entrar sem nenhum controle."

Além de Boris, os dois ministros que conduzem essa crise migratória foram apoiadores do brexit —Patel e Michael Gove (Habitação) participaram ativamente da campanha que antecedeu o referendo de 2016. Um dos motes do movimento foi o slogan "take back control" (retomar o controle), em referência a fronteiras, leis e recursos financeiros.

Até esta quinta-feira (17), segundo o governo britânico, foram abertos cerca de 45,8 mil pedidos de visto familiar por refugiados ucranianos, dos quais 6.100 estão aprovados. O alcance do programa familiar é limitado, uma vez que a estimativa é de que a comunidade ucraniana no país seja de 35 mil pessoas.

Dos 3 milhões de refugiados da Ucrânia, a grande maioria cruzou as fronteiras rumo a países da UE, e só a Polônia já recebeu 1,9 milhão de pessoas. Não raro, os refugiados continuam se deslocando, ao encontro de familiares e amigos em outros países. Entre as quatro maiores economias do continente, a Alemanha é a que mais recebeu refugiados (175 mil), seguida por Itália (44 mil), França (13,5 mil) e Reino Unido.

Da necessidade de oferecer uma resposta mais abrangente nasceu o "Casas para Ucrânia". Pelo programa, pessoas, empresas e instituições de caridade podem hospedar, por pelo menos seis meses, refugiados ucranianos em troca de 350 libras (R$ 2.300) por mês.

A nova medida ainda acaba com a exigência de vínculos familiares. Para participar, os refugiados devem, na inscrição, indicar o nome de um anfitrião e solicitar um visto especial –instituições trabalham para conectar as partes.

Até quarta-feira, o programa já havia recebido mais de 120 mil pedidos de adesão de futuros anfitriões. Isso acendeu o sinal de alerta dos especialistas, como a organização Refugees at Home. Apesar de celebrar a criação do programa, a entidade listou uma série de pontos que precisam ser observados, como a necessidade de vistoria dos espaços oferecidos, entrevista prévia das famílias anfitriãs e um plano de substituição para casos mal-sucedidos de acolhimento.

Daniel Sohege, diretor de comunicação da Love146, organização que combate exploração infantil, levantou a preocupação de que decisões apressadas resultem em situações de risco para mulheres e crianças ucranianas, perfil majoritário dos refugiados.

Tanto os refugiados que receberem o visto por meio do vínculo familiar quanto pelo sistema de patrocínio podem permanecer no país por até três anos, com direito a trabalhar e a ter acesso a saúde e educação.

O prazo é o mesmo adotado pela UE, por meio de diretiva aprovada por unanimidade no dia 3. O mecanismo, criado em 2001 no contexto dos conflitos da dissolução da ex-Iugoslávia, jamais havia sido ativado. Com o objetivo de agilizar e uniformizar a resposta dos 27 países-membros do bloco, o conjunto de ações estende direitos básicos dos residentes aos refugiados e simplifica controles de fronteiras.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.