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Brasileira relata desespero ao ver marido e filha de 1 ano morrerem afogados ao cruzar rio para os EUA

Thais diz que vai recomeçar a vida nos EUA depois de ser apadrinhada por uma família

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Felipe Souza
São Paulo | BBC News Brasil

Sem saber nadar e carregando nos braços a filha Eloah, de 1 ano e 11 meses, Thais Natali Montenegro Lenda, 23, se esforça para cruzar as águas do rio Grande, na fronteira do México com os EUA, no Texas.

A criança engole água, e o marido de Thais, Daniel Lenda, se debate, fazendo os últimos esforços para não submergir. Daniel se afasta, desaparece, e apenas mãe e filha chegam ao lado americano da fronteira.

Equipes de resgate passaram mais de uma hora fazendo manobras para reanimar a criança. Thais conta que a menina chegou a ser levada ao hospital, mas não resistiu.

Thais viu marido e a filha morrerem enquanto atravessava a fronteira do México com os EUA
Thais viu marido e a filha morrerem enquanto atravessava a fronteira do México com os EUA - Arquivo pessoal

O corpo de Daniel foi encontrado quatro dias depois. Pai e filha foram cremados com o dinheiro que Thais arrecadou por meio de vaquinhas virtuais e doações de líderes de igrejas locais. Depois de mais de um mês viajando de ônibus a partir de São Paulo, foi dessa maneira que terminou o sonho da família de ter uma vida melhor nos Estados Unidos.

Hoje, Thais se mudou para outro estado, onde pretende recomeçar a vida após ser apadrinhada por uma família americana. Ela afirma que ainda está muito frágil devido à tragédia, mas aceitou contar em entrevista à BBC News Brasil o que levou a família a tentar fazer a travessia e os momentos de desespero que viveu ao ver marido e filha morrerem.

Como tudo começou

Thais conta que não teve a presença paterna na infância. Foi criada pela mãe e pela tia-avó em Osasco, na Grande São Paulo. Aos 17 anos, começou a faculdade de psicologia enquanto trabalhava como assistente comercial numa multinacional americana. Fez o curso durante dois anos e meio, mas parou porque não teve mais condições de pagar. Em 2021, formou-se na área e fez um MBA em finanças e controladoria.

Já Daniel saiu de Angola em 2015, motivado pela instabilidade econômica e o medo de que ocorresse uma nova guerra civil. Ele morou por um ano no Rio de Janeiro e depois se mudou para São Paulo, onde conheceu Thais. Um dos objetivos dele era cursar engenharia elétrica. Thais diz que não se sentiu confortável quando o marido falou que tinha vontade de largar tudo e viver nos Estados Unidos.

"Ele falou para mim: 'A gente vai conseguir, fique calma. Meu irmão vai ajudar a gente. Ele também vai'. Mas eu não sei falar como foi essa negociação, porque ficou entre eles", conta.

O irmão de Daniel chegou a vender um salão de beleza, carro e móveis para fazer a viagem, segundo Thais. Mas ele cursava engenharia em uma universidade federal e desistiu de deixar o Brasil poucos dias antes do embarque. Thais, a filha e o marido iniciaram a viagem aos Estados Unidos pegando um voo de São Paulo para o Peru, em janeiro de 2022, após três meses de planejamento. Eles venderam móveis e objetos pessoais para juntar o máximo de dinheiro.

Ela conta que o casal doou boa parte do que tinha antes de ir e chorou ao falar da generosidade do marido. "Ele era muito simpático. Qualquer pessoa que chegava para conversar, ele ajudava. O Daniel estava sempre disposto a ajudar as pessoas com comida, com roupa, tudo", contou, emocionada.

Segundo ela, Daniel sonhava em morar nos Estados Unidos para conseguir um bom emprego que proporcionasse uma vida melhor à família.

De Lima, capital do Peru, eles seguiram viagem de ônibus. Ao chegar ao Panamá, passaram cinco dias em um centro para refugiados, onde receberam comida e atendimento médico custeados pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Na sequência, o casal passou um mês no estado de Chiapas, no México, até receber um visto de turista para permanecer no país. Em 13 de março, assim que a documentação foi emitida, Daniel sugeriu que eles viajassem para a cidade de Acuña, na fronteira com os Estados Unidos.

"Meu marido e minha filha estavam muito felizes e brincando. Estava um clima meio diferente. Minha filha ficou do meu lado. Ela passou o tempo todo comigo", lembra Thais.

Thais conta que a família não tinha dinheiro suficiente para se hospedar e ficou na casa de um conhecido do marido que mora há muitos anos em Acuña. Ela diz que não recebeu a ajuda de coiotes, como são conhecidas as pessoas na região de fronteira que auxiliam imigrantes a entrarem ilegalmente no país.

A travessia

A única noite em Acuña foi de brigas e discussões entre o casal, segundo Thais, porque o marido insistia que a família atravessasse o rio para chegar aos Estados Unidos. "Não sei de onde veio essa ideia dele. Falei: 'Amor, para que você quer atravessar aquele rio? Você disse que queria ficar aqui em Acuña para trabalhar, para ter uma vida melhor. Por que você quer tanto atravessar esse rio?'. Ele disse que ali já era o Texas e que inclusive os moradores estavam atravessando", conta emocionada.

Ela afirma que o trauma do acidente apagou parte das suas memórias daquele momento. Mas narra em detalhes o que se lembra dos últimos momentos com o marido e a filha. "Ele [Daniel] pediu para eu entrar em uma rua estreita. Ele falou assim: 'Amor, aqui é onde todo mundo atravessa, vem comigo'", diz.

Ela conta que era madrugada e que o rio estava de fato muito raso no começo.

"Quando a gente começou a atravessar, estava no nível do pé. Eu estava nervosa, e ele [Daniel] estava com a nossa filha nas costas, além de algumas coisas pessoais. Fui atrás dele. Não tinha ninguém perto. Não tinha guia, nenhum coiote. Não sabia que ali era região de coiote. Fomos atravessando e, quando faltavam três ou quatro passos para a gente chegar aos EUA, o nível do rio aumentou muito e chegou até abaixo do joelho", afirma. Ela conta que, nesse momento, sentiu medo e disse que queria desistir da travessia.

"Meu marido sempre foi muito teimoso. Na sequência, ele escorregou numa pedra. Acho que ele não tinha visto as pedras. Então, a gente caiu, e eu fui levada por ele para o fundo da água. Não sei explicar o que vivi ali. Foi uma questão de segundos. Meu marido me segurando. Eu já estava no fundo e ele me puxando para cima pelas tranças", contou. Thais diz que o marido estava com a filha nos braços quando ela viu que a criança estava se afogando e pediu que ele a passasse para ela.

Daniel, Thais e a filha
Thais disse ter questionado o desejo do marido de cruzar o Rio Grande, entre o México e os EUA - Arquivo Pessoal

"Foi uma situação de horror. Falei: 'Daniel, segura minha mão. Olha para mim', e ele já estava com o olho todo branco, sem consciência. Acho que ele bebeu muita água. Eu falei: 'A Lolô não está respirando'. Quando ele ouviu isso, eu não vi mais meu marido", lembra.

Ela conta que fez uma oração e, naquele momento, sentiu uma mão a puxando pelas costas. E, depois de alguns instantes, começou a sentir as pedras no chão e conseguiu concluir a travessia com a filha nos braços. Ela diz ter procurado socorro e foi ajudada pela guarda costeira por volta das 6h. Thais conta que não havia outras pessoas próximas. E que sentiu uma "sensação de abandono" ao ver a filha morrendo no hospital após uma sequência de tentativas de reanimação.

Brasileiros ilegais

A região onde a família cruzou a fronteira é conhecida pela travessia ilegal de imigrantes.

O número de brasileiros cruzando ilegalmente a fronteira sul dos Estados Unidos bateu recorde histórico no ano fiscal de 2021 (que vai de 1º de outubro de 2020 a 30 de setembro de 2021). Ao todo, foram 56.881 detidos, um aumento de 700% em relação ao mesmo período de 2020.

Os dados foram divulgados em 22 de outubro de 2021 pelo órgão americano de Alfândega e Proteção de Fronteiras. Hoje, Thais diz que gostaria que o depoimento dela servisse de exemplo para que outros brasileiros não tentem entrar nos Estados Unidos de maneira ilegal.

"Queria pedir para essas pessoas não seguirem nesse caminho. Tem que fazer corretamente, ir no consulado. É caro, mas são a segurança e o cuidado que importam", afirma.

Ela diz que, desde que chegou aos Estados Unidos, não recebeu ajuda do governo brasileiro. Houve apenas um contato de uma funcionária do setor de emergência do Itamaraty.

Procurado, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) informou em nota que "está ciente do caso e, por meio do consulado-geral em Houston, presta a assistência cabível, em conformidade com a legislação local e os tratados internacionais vigentes". A pasta afirma ainda que "informações detalhadas poderão ser repassadas somente mediante autorização dos envolvidos". "Assim, o MRE não poderá fornecer dados específicos sobre casos individuais de assistência a cidadãos brasileiros."

A BBC News Brasil também procurou a Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês), mas não houve resposta.

Recomeço nos Estados Unidos

Depois de cruzar a fronteira, Thais agora busca se reerguer emocionalmente e seguir os planos da família de viver nos Estados Unidos. Após uma decisão judicial, ela diz ter sido autorizada a permanecer no país durante ao menos dois anos, acolhida por uma família. Nesse período, essa família vai apadrinhar Thais e se responsabilizará pela permanência dela.

Thais diz se sentir aliviada por ter sido acolhida. Caso contrário, seria enviada a um centro de detenção feminina, para onde são levados os imigrantes ilegais. "Eu tive até pensamentos suicidas. Tive um sentimento de culpa. Eu só queria agradecer aos brasileiros daqui, à comunidade brasileira no Reino Unido, em Portugal e na Austrália que me ajudaram, mandaram mensagens", afirma.

Thais afirma que deseja apenas ser respeitada, conseguir um trabalho, estudar e seguir a vida.

"Eu quero que as pessoas olhem com mais amor aos imigrantes. Aqui mesmo foi construído pelos imigrantes. São Paulo só é São Paulo, com mais conhecimento e riqueza, por meio dos imigrantes. Quantos italianos e japoneses foram para São Paulo para conseguir uma vida melhor? Nenhum país cresce sozinho, sem os imigrantes."

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