Brasileiros deportados dos EUA relatam humilhação, racismo e maus-tratos

Migrantes que chegam a MG denunciam abusos; embaixada diz que há compromisso com tratamento respeitoso

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Governador Valadares (MG), Confins (MG) e Brasília

Brasileiros deportados dos Estados Unidos relatam humilhação, racismo e maus-tratos sofridos durante as tentativas de entrar no país. Histórias de abusos são recorrentes entre migrantes mantidos em centros de detenção após verem frustrada a passagem pela fronteira com o México.

"Eles [agentes de segurança] tratam a gente mal, [com] falta de educação, agridem verbalmente porque não podem encostar na gente. Eu não entendia muito bem o que diziam, mas o tempo todo eles gritavam 'fuck you, shit'", contou à Folha o agricultor André Luiz Pereira do Vale, 19.

Hoje ele mora na comunidade rural de Córrego do Dourado, em Tarumirim (MG). O município fica no entorno de Governador Valadares, no leste mineiro, marcado historicamente pela migração para os EUA.

André Luiz Pereira do Vale, 19, ficou detido em um centro para imigrantes no Mississippi, nos EUA, e foi deportado para o Brasil em  novembro
André Luiz Pereira do Vale, 19, ficou detido em um centro para imigrantes no Mississippi, nos EUA, e foi deportado para o Brasil em novembro - Pedro Ladeira/Folhapress

Na última semana, a Folha mostrou que brasileiros dessa região arriscam a vida na travessia pelo México e contrabandistas alugam crianças por US$ 3.000 para facilitar a entrada ilegal.

Oito irmãos do jovem de Tarumirim já tinham cumprido a jornada de entrar nos EUA pela fronteira sul. Ele tentou a travessia em abril deste ano, mas o plano deu errado quando teve negado o pedido de asilo depois de se entregar a autoridades americanas.

Vale conta que os problemas começaram já na fase de triagem, quando dormiu no chão e passou frio. Ele depois ficou seis meses em um centro de detenção no Mississippi, período em que viveu os momentos mais traumáticos de que se recorda —que o fizeram desistir definitivamente de uma nova tentativa de mudar de país.

Segundo o relato do jovem agricultor, as refeições no local eram servidas com excesso de pimenta e às condições precárias somavam-se agressões verbais frequentes dos agentes de segurança.

Diante das ofensas e dos constrangimentos, ele recorreu à fé. Católico, passou a fazer pregações para brasileiros, haitianos e venezuelanos. "Foi Deus que me ajudou e me sustentou. Eu sempre tive minha fé, mas não conhecia Deus como conheci lá", afirma.

Vale é um entre tantos brasileiros deportados semanalmente em voos fretados pelo governo americano que chegam ao aeroporto de Confins (MG). Segundo dados da Polícia Federal, foram 1.304 em 2020 e 2021.

O terminal foi escolhido para o desembarque porque 70% dos que voltam são de Minas Gerais. A palavra humilhação foi a mais citada em relatos colhidos pela Folha.

A embaixada dos EUA, em nota, afirma que todas as instituições governamentais estão comprometidas com o tratamento respeitoso. "Estamos preocupados com o sofrimento humano que essas perigosas viagens trazem àqueles que as fazem, especialmente para menores. Tentar entrar ilegalmente nos EUA cria mais problemas do que os resolve", diz a assessoria de imprensa da representação diplomática.

A estudante Melissa de Carvalho, 19, foi detida e encaminhada para o estado do Arizona. Ela conta que não recebeu tratamento digno na cela, que estava superlotada.

"Cutucavam a gente, e os deboches eram muito com o olhar, para a roupa, o tênis. Debocharam do meu cabelo. Meninas tinham a menstruação correndo pelas pernas e as agentes riam, controlavam até o papel higiênico."

Carvalho mora em Serra (ES) e viajou em agosto para tentar a travessia, acompanhada do irmão, para se encontrar com a família que a aguardava nos EUA. Ele conseguiu entrar, mas ela foi mandada de volta ao Brasil no mês passado.

De acordo com a PF, o perfil dos deportados em geral é masculino, com idade de 18 a 25 anos e que já tentou entrar ilegalmente antes em solo americano. Predominantemente, os aspirantes declaram ser estudantes, trabalhadores da construção civil e do comércio.

Melissa de Carvalho, 19, tentou entrar nos EUA, mas foi deportada; ela ficou detida no Arizona e disse que não recebeu tratamento digno na cela
Melissa de Carvalho, 19, tentou entrar nos EUA, mas foi deportada; ela ficou detida no Arizona e disse que não recebeu tratamento digno na cela - Pedro Ladeira/Folhapress

O cozinheiro Jhonatan Nogueira da Silva, 35, é um dos reincidentes. Ele viveu nos EUA de 2000 a 2008 e tentou voltar, entrando de forma irregular, em 2019. "Alguns [agentes de imigração] abusam da autoridade, são bem racistas, não gostam de imigrante. Zombam, fazem críticas, principalmente a quem não fala inglês", diz.

Ao chegar ao Brasil em novembro, Silva carregava um saco laranja, entregue pelas autoridades americanas, com seus pertences. Ele se disse indignado por ter sido algemado no voo de deportados —crítica feita também por André Luiz Vale e Melissa de Carvalho; todos dizem nunca terem cometido um crime.

A prática é uma política habitual dos EUA. As algemas só são retiradas quando o avião aterrissa em solo brasileiro.

Segundo João Francisco Campos da Silva Pereira, chefe da Divisão de Assistência Consular do Ministério das Relações Exteriores, a dispensa do uso de algemas em voos de deportação é uma das principais reivindicações do Itamaraty e da Polícia Federal.

Um dos argumentos é o de que a maioria das pessoas detidas não é criminosa, já que, de acordo com a lei brasileira, a migração irregular por si só não é ilegal.

As autoridades brasileiras também já pediram que parentes não sejam separados na deportação e que pessoas com problemas de saúde só embarquem se estiverem em condições de viajar após receber tratamento médico nos EUA.

Jhonatan Nogueira da Silva, 35, no aeroporto de Confins (MG); ele foi deportado e chegou ao Brasil com os pertences dentro de um saco laranja
Jhonatan Nogueira da Silva, 35, no aeroporto de Confins (MG); ele foi deportado e chegou ao Brasil com os pertences dentro de um saco laranja - Pedro Ladeira/Folhapress

A contrapartida do Itamaraty e da PF foi a autorização dada ao governo Joe Biden para enviar dois voos de deportados por semana. Segundo as autoridades brasileiras, os americanos tentam negociar um terceiro voo.

Em relação às queixas dos ouvidos pela reportagem, Pereira diz que o Itamaraty não tem conhecimento de todos os problemas relatados porque, na maioria das vezes, os migrantes não procuram órgãos oficiais. Segundo ele, o papel do órgão é zelar para que brasileiros recebam tratamento digno, mas é importante que a denúncia seja formalizada para que a pasta possa pedir explicações oficiais às autoridades americanas.

"O que a gente percebe é que muitos brasileiros têm medo de ir ao consulado, de procurar nossa ajuda, porque acham justamente que a gente vai denunciar para as autoridades locais, seja nos EUA, no Japão, em Portugal, na França", afirma. "A gente não faz isso. Nossa obrigação é atender, acolher o brasileiro e prestar a assistência mínima cabível."

A orientação de não contar os problemas às autoridades parte de contrabandistas e coiotes. De acordo com os relatos de deportados, ao entrarem nos EUA eles recebem orientações sobre como e com quem devem falar.

Para solicitar asilo às autoridades americanas, por exemplo, uma das diretrizes é dizer que estão sob ameaça de morte no Brasil ou que foram torturados por agentes do governo, como policiais e políticos.

A embaixada americana, em nota, afirma que os EUA acolhem a migração legal como um dos alicerces da formação do país. Diz ainda que as leis de migração não mudaram, continuarão a ser cumpridas e que a fronteira não está aberta.

"Os voos de deportação continuam, inclusive para o Brasil, e indivíduos que tentam entrar ilegalmente devem prever a remoção para seu país de origem. Nossa mensagem aos indivíduos que consideram fazer a perigosa e onerosa jornada para tentar entrar ilegalmente nos EUA é simples: não o façam", afirma a nota do órgão, ecoando o discurso oficial do presidente Biden e de sua vice, Kamala Harris.

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