Suposto coiote de Minas Gerais cobraria até R$ 100 mil para levar brasileiros aos EUA

Polícia Federal começou a investigar empresário após viagem dele ao Paraguai que seria tentativa de fugir com a filha de 3 anos

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Gabriel Stargardter
Belo Horizonte | Reuters

Este ano vê um número recorde de brasileiros detidos na fronteira sul dos Estados Unidos, parte da crise migratória maior que o país governado por Joe Biden enfrenta. A polícia daqui acredita agora que a disputa sobre a guarda de uma criança pode ter ajudado a identificar um dos coiotes que está levando migrantes para tentar a sorte na América do Norte.

No início de junho, a Polícia Federal brasileira prendeu o empresário Chelbe Moraes, 60, que teria fugido com sua filha de três anos depois de perder a guarda dela para sua ex-companheira. Após grampear telefones de pessoas ligadas a Moraes, a polícia começou a suspeitar que ele fosse um veterano traficante de pessoas, ou o chamado coiote.

O brasileiro Chelbe Moraes ao ser expulso do Paraguai, no começo de junho - Divulgação Dirección General de Migraciones/Reuters

Num boletim de 25 de junho enviado a um juiz federal e ao qual a Reuters teve acesso, a polícia pediu o indiciamento de Chelbe Moraes por tráfico de menor, tráfico de pessoas e conspiração criminal.

A polícia acusa o empresário de cobrar de brasileiros que não possuem vistos americanos válidos cerca de US$ 20 mil (pouco mais de R$ 110 mil) por pessoa para ingressar nos EUA via México. Para isso, Moraes teria montado uma rede internacional que inclui policiais e funcionários públicos corruptos, além de familiares seus residentes nos EUA, segundo o documento encaminhado ao tribunal.

A Reuters conversou com mais de 20 pessoas com conhecimento do caso, incluindo policiais, autoridades de imigração, sócios de Moraes e três pessoas que se disseram seus clientes. As entrevistas pintam o retrato de um coiote experiente cujos negócios têm prosperado em meio à turbulência política e econômica brasileira.


Moraes, que à polícia se declarou inocente, disse que dirige uma consultoria legítima sediada em Minas Gerais, onde reside, que assessora pessoas em seus pedidos de asilo nos EUA. Afirmou que ao longo de 20 anos de carreira já atendeu cerca de 200 clientes que satisfazem os critérios para migrar, cobrando até R$ 100 mil.

“Minha assistência é caríssima porque eu conheço as leis americanas”, disse.

Dados da agência americana de Alfândegas e Proteção das Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) mostram que nos primeiros 11 meses do ano fiscal de 2021, 46.280 brasileiros foram detidos na fronteira sul dos EUA, contra 17.893 no ano inteiro de 2019.

Embora esse número seja pequeno em comparação aos mais de 550 mil mexicanos detidos até agora neste ano, os brasileiros hoje figuram no 6º lugar entre as nacionalidades de migrantes detidos em 2021.

Eles fazem parte de uma onda de migrantes latino-americanos que fogem de uma região fustigada pela Covid-19, na esperança de receber tratamento mais brando desde que o ex-presidente de linha dura Donald Trump deixou o cargo —na verdade, as detenções de migrantes na fronteira sul dos EUA alcançaram o nível mais alto nos últimos 20 anos, gerando dores de cabeça para o presidente Joe Biden.

“Já tivemos fluxos de brasileiros no passado, mas não neste nível”, comenta Ramon Romo, diretor da Unidade de Tráfico de Pessoas da Homeland Security Migrations, a unidade investigativa da ICE, agência americana de Imigração e Controle Aduaneiro.

No dia 7 de julho o Ministério Público Federal brasileiro indiciou Moraes por tráfico de criança, por ter fugido para o Paraguai com sua filha. Ele se declarou inocente, dizendo que foi uma viagem a trabalho previamente planejada. Agora, de volta ao Brasil, ele aguarda o julgamento em liberdade.

Ele não foi criminalmente acusado em conexão com sua suspeita operação de tráfico de pessoas. Os promotores deram prazo maior à polícia para investigar o celular, um disco rígido de computador e outros documentos de Moraes apreendidos.

Duas pessoas familiarizadas com suas alegadas operações ilegais —um ex-cliente e uma ex-sócia— disseram à Reuters que Moraes orienta seus clientes a fazer-se passar por turistas quando chegam ao México e que às vezes suborna funcionários de imigração mexicanos para facilitar a entrada deles no país.

Em seguida, os conduz para o norte, onde eles ou atravessam a fronteira americana ilegalmente com a ajuda de coiotes mexicanos contratados ou pedem asilo nos EUA usando documentos falsos e relatos pessoais complexos que Moraes ajuda a arquitetar para eles.

O Instituto Nacional de Migração mexicano, a agência federal de imigração do México, não respondeu a um pedido de declarações.

As pessoas que conseguem comprovar que são perseguidas em seus países de origem em função de sua raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas podem ter direito a asilo nos EUA. Devido ao acúmulo de casos não processados nos tribunais de imigração americanos, os candidatos a asilo que conseguem entrar no país frequentemente podem permanecer por anos enquanto seus casos são processados.

Chelbe Moraes disse que as pessoas que o acusam de ser coiote foram induzidas a fazê-lo pela polícia ou têm inveja de seu sucesso, mas admitiu que tem se beneficiado dos problemas do Brasil.

“Quanto pior fica o governo aqui, melhor para mim.”

'Aumento sem precedentes'

A migração de brasileiros para os EUA vem aumentando desde 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente. Pouco mais de 1.500 brasileiros foram detidos na fronteira sul dos EUA em 2018. O número cresceu 1.100% no ano fiscal seguinte.

O Brasil tem enfrentado crises múltiplas sob a administração de Bolsonaro. Mais de 600 mil brasileiros já morreram de Covid –o segundo maior número de mortos pelo vírus no mundo, perdendo apenas para os EUA. O desemprego está em cerca de 14% e a inflação anual já está próxima aos dois dígitos. A pobreza é crescente.

“O brasileiro comum está desiludido com tudo”, diz Daniel Fantini, que chefia a investigação sobre Chelbe Moraes.

O governo Bolsonaro não respondeu a pedidos de declarações.

Para entrar nos EUA, brasileiros precisam de um visto de turista. Esse processo foi dificultado pela Covid-19, e o número de turistas que permanecem no país após o fim da validade de seus vistos é crescente, segundo três funcionários americanos disseram à Reuters.

Muitos brasileiros vêm recorrendo a coiotes, segundo migrantes, seus familiares, policiais e funcionários.

A enfermeira Lenilda dos Santos, do norte do Brasil, morreu de sede em setembro depois de atravessar a fronteira e entrar no estado do Novo México. Seu irmão, Leci Pereira, disse que ela concordara em pagar US$ 25 mil (R$ 138 mil) a um coiote, prometendo sua casa como garantia. O alegado coiote, que só se identifica junto a seus clientes pelo apelido Piskuila, não respondeu à reportagem.

Na Califórnia, agentes da CBP estão acostumados a falar espanhol, a língua do México e da maior parte da América Latina. Estão tendo dificuldade com o aumento “sem precedentes” de brasileiros que vêm sendo detidos na fronteira.

Esforços diplomáticos estão sendo feitos para reduzir o fluxo de migrantes brasileiros.

Os brasileiros não necessitam de visto para entrar no México, e isso torna mais fácil para os coiotes levar os migrantes a esse país de avião e então transportá-los para o norte. Duas fontes familiarizadas com a situação disseram à Reuters que, para dificultar esse caminho, a administração Biden quer que o México passe a exigir visto de brasileiros.

As discussões nesse sentido começaram em julho, mas o México vem resistindo, citando o turismo brasileiro lucrativo e a possibilidade de Bolsonaro adotar ação recíproca. O Departamento de Estado americano se negou a comentar “discussões diplomáticas em curso”. As chancelarias mexicana e brasileira não responderam.

Investigação ativa

Quando Moraes fugiu do país com sua filha, a Polícia Federal interrogou seus supostos sócios.

Geisiane Batista, que, segundo as autoridades, cuidava das finanças da operação de tráfico de pessoas, ajudava Moraes a administrar uma confecção de lingerie em Minas Gerais, segundo seu depoimento contido no boletim policial visto pela Reuters. Ela disse à polícia que candidatos a migrantes, nenhum dos quais tinha visto americano, iam à fábrica com frequência para encontrar Moraes e organizar sua viagem.
Moraes negou o relato de Batista.

Policiais paraguaios, brasileiros e agentes da Interpol posam após a detenção de Chelbe Moraes - Divulgação Dirección General de Migraciones - 7.jun.21/Reuters


José Martins era motorista de Chelbe Moraes e disse à polícia em depoimento que levava migrantes ao Rio de Janeiro e a São Paulo para embarcar em voos para o México. Disse que Moraes cobrava R$ 100 mil para “colocar alguém nos EUA” e pagava a ele uma comissão de R$ 1.000 por cliente novo que conseguia.

Entre as pessoas que Martins teria transportado estavam Ismael da Silva e sua mulher. Segurança desempregado, Silva disse em seu depoimento que vendeu seu carro, móveis e ferramentas para ajudar a financiar a viagem deles, que custou US$ 17 mil (R$ 94 mil).

O casal não foi longe. Silva contou à PF que quando ele e a mulher desembarcaram em Cancún, em maio, as autoridades mexicanas não os deixaram ficar no país. Contatado, ele se recusou a comentar.

Outros tiveram mais sorte. Martins, o motorista, afirmou à polícia que o casal Silva fez parte de um grupo de 12 migrantes brasileiros nessa viagem, seis dos quais entraram nos EUA. Martins não comentou.

Segundo a polícia, evidências colhidas de grampos telefônicos sugerem que Chelbe Moraes recorre a alguns familiares residentes nos EUA para ajudá-lo a transportar migrantes. Uma dessas pessoas seria sua filha adulta Janaína Moraes. A polícia brasileira não a acusou de qualquer infração.

Janaína, que vive perto de Boston, disse que às vezes usava seu telefone para organizar estadias em hotel para os clientes de seu pai ou comprar comida para eles. Mas negou que trabalha para seu pai. Uma porta-voz do Departamento de Segurança Interna americano se negou a comentar sobre o que disse ser uma investigação ativa.

Famílias falsas

O migrante brasileiro Bruno Lube, 41 anos, contou à Reuters que contratou os serviços de Chelbe Moraes em 2016, mas foi detido por guardas americanos depois de escalar o muro de fronteira perto de El Paso com um coiote mexicano. Disse que passou quase cinco meses em detenção nos EUA até ser deportado de volta ao Brasil, onde denunciou Moraes à Polícia Federal.

Uma porta-voz da PF confirmou a queixa apresentada por Lube contra Moraes em 2017, dizendo que ela está sendo investigada.

Moraes negou as alegações, dizendo que não conhece Lube. A CBP americana se negou a comentar.

Segundo a polícia brasileira e uma fonte que tem conhecimento da operação de Moraes, este tem tido mais sucesso em ajudar famílias a entrar nos EUA.

Mexicanos e centro-americanos acompanhados de crianças frequentemente são expulsos para o México ao chegar à fronteira americana, como parte de uma política americana que começou a ser aplicada durante a pandemia. Mas quase todos os brasileiros acompanhados de menores que chegam à fronteira sul buscando asilo são admitidos no país para aguardar suas audiências em solo americano.

Dados da CBP indicam que até agosto deste ano fiscal, 99,2% das famílias brasileiras foram autorizadas a entrar nos EUA, contra apenas 15% das famílias mexicanas, 57% das que vêm da Guatemala e 66% das hondurenhas. Quando a política de expulsão começou, o México disse que só aceitaria mexicanos e centro-americanos expulsos dos EUA. Desde então, porém, o país tem aceito algumas outras nacionalidades.

Para burlar o sistema, Moraes teria criado famílias falsas compostas de adultos e menores não aparentados, que ele munia de documentos falsos e relatos pessoais fictícios sobre suposta violência doméstica ou ameaças de gangues, para fortalecer seus pedidos de asilo.

Moraes nega essas alegações, dizendo que só assessora famílias legítimas.

Tradução de Clara Allain

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