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Vitória de Orbán mostra que reerguer democracia na Hungria é jogo de longo prazo

Autocratas como o premiê húngaro, quando reeleitos sucessivamente, tornam-se impregnados no poder

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Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos e coordenador do núcleo de justiça racial e direito na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

São Paulo

O cubo mágico foi inventado pelo arquiteto húngaro Erno Rubik em 1974. Objeto de orgulho nacional, a invenção, por permitir uma quantidade imensa de formas de arranjar as cores, é a representação gráfica mais fiel do estágio da democracia no país: reerguer os freios e contrapesos desmantelados, um a um, por 12 anos de governo de Viktor Orbán requer paciência e consciência de que o jogo é de longo prazo.

A derrota da oposição húngara neste domingo (3) foi humilhante, não apenas pelos números que indicam uma vitória expressiva do Fidesz, o partido de Orbán; mas em especial por questionar a estratégia dos seis partidos de oposição, da esquerda à extrema direita, de se unir pela primeira vez em torno de um único candidato (o prefeito conservador Péter Márki-Zay).

O premiê da Hungria, Viktor Orbán, discursa a membros de seu partido, o Fidesz, após saírem os resultados da eleição - Attila Kisbenedek - 3.abr.22/AFP

Para a oposição, a cereja no bolo da humilhação deste domingo veio com a notícia de que Márki-Zay nem sequer ganhou em seu próprio distrito eleitoral, Hódmezővásárhely.

A lição que se pode tirar do fracasso da oposição na Hungria não é a má escolha da estratégia de união —provavelmente, era o melhor a se fazer dentro da arte do possível. A quinta vitória de Orbán ensina que mesmo a melhor estratégia eleitoral a curto prazo não é capaz de reverter o jogo de longo prazo que o premiê tem jogado desde que assumiu o posto em 2010: capturar o Estado húngaro para si e seus aliados —tarefa essa em que tem sido muito bem-sucedido.

Orbán logrou modificar as regras eleitorais a seu favor, em especial com mudanças legais em 2020 durante o estado de emergência em razão da pandemia, sem a devida consulta pública e aproveitando-se de uma maioria qualificada de dois terços no Parlamento.

Embora a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) não tenha encontrado fraudes em seu relatório, enviou à Hungria grande número de observadores e ressaltou pontos de atenção nas práticas eleitorais.

Entre elas, pode se citar a mudança do sistema eleitoral de dois turnos para um; o aumento dos mandatos de distrito único em comparação às cadeiras de lista partidária; a criação de barreiras para que húngaros que moram fora do país, em especial aqueles sem endereço registrado na Hungria, votem por correio; a leniência com a prática de endereços fictícios para que eleitores votem em distritos onde não moram; a disparidade de recursos entre oposição e governo para propaganda eleitoral; e o domínio da mídia húngara por aliados do premiê.

A autocracia húngara, sob Órban, é sofisticada. De um lado, coopta o Estado, por meio de sucessivas eleições que permitem, com o uso de regras administrativas, capturar as instituições democráticas para seus aliados num processo de deterioração gradual mas assertiva da democracia. O guia de como se tornar um autocrata, segundo os passos de Órban, ensina que reeleição significa consolidação de poder.

De outro lado, o primeiro-ministro oferece um imaginário político de forte apelo para eleitores, em especial nas zonas rurais do país. Com Orbán, a política antigênero e anti-LGBT se alia à postura antimigração e anti-Bruxelas para formar um cubo mágico sofisticado baseado na política da inimizade: "temeis os inimigos que construímos" —sendo os inimigos os outros, os LGBTs que destruirão sua família, os migrantes que roubarão seus empregos e os burocratas da União Europeia que tomarão controle de suas vidas.

O principal exemplo deste imaginário de Orbán foi ter realizado ao lado do pleito eleitoral um referendo cujo objetivo oficial era "proteger" crianças da propaganda LGBTQIA+. O referendo servia a dois propósitos: criar um inimigo imaginário por meio da desinformação e lembrar ao eleitor o que estaria em jogo no pleito principal para o Parlamento, desviando a atenção, como uma cortina de fumaça, da crise econômica e dos indícios de mau uso e de corrupção com dinheiro da União Europeia na Hungria.

Ao verificar-se que o Fidesz moldou as leis e práticas eleitorais húngaras a seu semblante, fica claro que a oposição, ora unida, e Orbán, novamente vitorioso, estão jogando em tempos distintos: resta saber se, após a derrota deste domingo, a oposição se desmantelará novamente ou persistirá no jogo da paciência para não somente tentar ganhar as próximas eleições, mas principalmente retirar de Orbán o controle das instituições húngaras, do Judiciário às universidades, passando pela economia e pela mídia.


Nem a guerra da Rússia contra a Ucrânia conseguiu mudar os ventos favoráveis a Orbán. O líder húngaro possui próximos laços com o presidente russo, Vladimir Putin. "Se você quiser analisar a campanha eleitoral, precisa traçar uma linha em 24 de fevereiro [dia da invasão russa na Ucrânia]", disse à CNN Andrea Virág, diretora de estratégia do centro de pesquisa Republikon Institute, em Budapeste. A tática de Orbán foi construir uma imagem irreal calcada na dicotomia paz versus guerra.

O premiê húngaro classificou a oposição de sedenta por guerra dada a sua posição pró-Ucrânia, ao passo que preferiu investir numa autoimagem de pacifista, mesmo que às avessas. A campanha de Orbán evitou criticar Putin e espalhou pelo país pôsteres com os dizeres: "Vamos preservar a paz e a segurança da Hungria", sugerindo neutralidade.

A realidade é outra: nem o governo de Orbán impediu esforços pró-Ucrânia na União Europeia e na Otan nem a oposição havia sugerido um envolvimento militar do país na guerra. Pouco importa: no cubo mágico de Orbán, dorme-se com Putin, mas faz-se sinal de paz e amor.


A questão russa é importante no contexto geopolítico húngaro por diversas razões. Putin e Orbán possuem fortes laços pessoais de longa data, em especial pela Rússia ser o exemplo de iliberalismo que Orbán admira. Enquanto o chanceler russo condecorava sua contraparte húngara com a mais alta honraria da Rússia a estrangeiros, o sistema de informação da diplomacia da Hungria estava comprometido pela invasão cibernética pelos serviços de inteligência russa. Nem isso abalou os laços de amizade.

Outro ponto é intra-europeu: a resistência de Orbán em condenar Putin pela guerra na Ucrânia o coloca em rota de colisão com os líderes direitistas do Grupo de Visegrád, composto por Eslováquia, Polônia e República Tcheca, além da própria Hungria.

Os líderes dos três primeiros países visitaram em março o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, em Kiev, e a Polônia, outro líder em destruir democracias, opõe-se expressamente à guerra iniciada pela Rússia, diferentemente de Orbán. Analistas têm visto que, por essa via, abre-se uma janela de oportunidade para isolar ainda mais o húngaro no bloco europeu, mesmo entre regimes tendentes à autocracia.

O que o domingo na Hungria nos ensina é que autocratas, quando reeleitos sucessivamente, tornam-se impregnados no poder —uma lição que deveríamos muito bem atentar para as eleições brasileiras de 2022. Hoje Orbán fica, e a oposição perde de forma humilhante.

Não se sabe, porém, se a frente ampla se erguerá, unida apesar das contradições internas, deste fiasco para continuar o jogo de longo prazo que é reerguer a democracia. No cubo mágico e na política, apenas se ganha se, com paciência e obstinação, continua-se a jogar.

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