Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Custo da guerra na infraestrutura da Ucrânia já é 6 vezes o de programa de Zelenski

Presidente apostava em reforma de rodovias e pontes para estimular economia e melhorar popularidade

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Belo Horizonte

Dentre os muitos planos que a invasão russa frustrou na Ucrânia, um era especialmente caro ao presidente Volodimir Zelesnki. Em 24 de dezembro de 2021, a dois meses do início da guerra e parecendo quase indiferente às tensões crescentes na fronteira, ele participou de um evento com empresários para vender um projeto de investimentos em infraestrutura.

O orçamento reservado para este ano previa 140 bilhões de grívnias (R$ 24 bilhões). O valor, por óbvio, não pôde ser gasto e hoje soa quase irrisório quando se estimam os impactos do conflito no setor: estragos diretos causados em rodovias, pontes e outras estruturas somam US$ 30 bilhões (R$ 146 bilhões), mais de seis vezes o imaginado para um ano de projeto.

A perda total, levando em conta todos os setores da economia, pode chegar a US$ 1 trilhão (R$ 4,9 tri), segundo o Centro de Pesquisa de Política Econômica (CEPR, na sigla em inglês) —sem contar o custo que qualquer guerra cobra, na forma de vidas.

Carro passa por uma cratera em uma estrada de Chernihiv, na Ucrânia
Carro passa por cratera gerada por explosão em estrada de Tchernihiv, na Ucrânia - Anastasia Vlasova - 9.abr.22/Getty Images/AFP

Zelenski esperava muito do programa, batizado de Grande Construção e criado ainda em 2019. "Há alguns anos, um evento chamado Estradas e Pontes era algo como um fórum sobre alienígenas ou viagens no tempo. Uma discussão sobre a qual todos ouviam dizer, mas quase ninguém via na prática", gabou-se o presidente em dezembro.

Por meio do projeto, o governo ucraniano tinha até então construído ou reparado mais de 14 mil quilômetros de estradas —cerca de 40% da rede rodoviária do país, conhecida como uma das piores da Europa— e 600 pontes, além de dezenas de escolas e hospitais, em parcerias com autoridades locais.

Em 2021, haviam sido gastos 106 bilhões de grívnias (R$ 18 bilhões), um aumento de cinco vezes em relação aos dois anos anteriores. Para este ano, a ideia era ampliar ainda mais os investimentos, o que, na visão de analistas, geraria mais de 200 mil empregos.

"As obras de fato começaram em 2020, simultaneamente à crise gerada pela Covid-19. A ideia central era estimular a economia, colocando muito dinheiro em setores como o de infraestrutura", diz Andrii Bespiatov, diretor e pesquisador da Dragon Capital, empresa de investimentos com sede em Kiev.

A guerra, naturalmente, interrompeu tudo: com a invasão russa, o dinheiro reservado teve que ser realocado, e milhares de quilômetros de estradas que precisavam ser reparados foram ainda mais destruídos, bem como outros equipamentos.

Entre as obras tornadas obsoletas pela guerra está a reconstrução do aeroporto de Kherson, bombardeado logo nas primeiras semanas do conflito. A cidade está hoje sob controle das forças de Moscou, com o sistema financeiro local já começando a ser convertido para os rublos russos.

Segundo o site do programa, neste ano também se renovaria a malha rodoviária do sul do país, que conecta cidades como Odessa, Mikolaiv e Mariupol —todas sob forte ataque, como parte da estratégia do Kremlin de criar uma conexão por terra com a Crimeia, anexada em 2014.

Por ironia, o programa Grande Construção era também a principal aposta de Zelenski para melhorar seus índices de popularidade —um objetivo que ele acabou atingindo como líder da resistência ucraniana. Eleito com mais de 70% dos votos em 2019, o presidente era aprovado no final de 2021 por cerca de 20% da população, segundo institutos de pesquisa locais.

Para Mikhail Alexseev, professor de ciência política na Universidade Estadual de San Diego (EUA), a tendência negativa de popularidade seguia o padrão de cobrança exercido sobre mandatários anteriores.

"Se me perguntassem se esse projeto ajudaria Zelenski a ganhar outra eleição caso a guerra não tivesse acontecido, eu diria que sim. Mas, no meio do mandato, o melhor que ele pôde fazer foi não deixar a aprovação cair tanto", diz.

De acordo com Alexseev, a cultura política ucraniana dificulta que o eleitorado associe grandes obras a um eventual êxito do presidente.

"Em um sistema no qual a figura do presidente é forte, como o do Brasil, é mais fácil atribuir esses feitos à liderança, mas na Ucrânia as pessoas pensam que a base pode fazer mais do que o topo", afirma. "Quando tudo fica ruim, é claro, todo mundo culpa o presidente, mas ganhar crédito é mais difícil."

Escândalos de corrupção envolvendo o programa ofuscaram o discurso de renovação proposto por Zelenski quando candidato. Em novembro de 2020, um ex-assessor acusou o governo de favorecer seis empresas nas licitações das obras, estimulando a criação de um cartel.

A administração ainda teria dado aval para o desvio de recursos de um fundo bilionário dedicado ao combate à pandemia —na Ucrânia, pouco antes da invasão, só 35% da população havia completado o primeiro ciclo vacinal, segundo a plataforma Our World in Data.

"A justificativa oficial era de que o governo estava reparando estradas que levavam a hospitais", lembra Bespiatov.

Agora, porém, pouco importam os relatos de rodovias asfaltadas e a impressão de que a infraestrutura ucraniana estivesse mesmo melhorando: quando a guerra terminar, esse caminho terá de ser percorrido novamente.

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