Vladimir Putin é esperto e, antes de invadir militarmente a Ucrânia, publicou no site do Kremlin um ensaio em que afirmava que o país vizinho nunca fora dono da própria identidade: esta viria da Rússia —cujo presidente procuraria agora desvalorizar os ucranianos para em seguida subjugá-los com muitas mortes e destruição.
A manobra é denunciada em um podcast da rede americana NPR (em inglês), com informações historicamente consistentes, por uma das maiores autoridades acadêmicas sobre a Ucrânia. Serhii Plokhii tem 65 anos e é professor em Harvard. Autor de "O Último Império" (2015), argumenta que a identidade local é anterior à russa e integra um quadro étnico e religioso de complexidade invejáveis.
O conflito desencadeado em fevereiro, diz ele, está funcionando para os ucranianos como guerra de independência, a partir da qual se alcança um novo patamar de identidade. O país, extenso e de pouco menos de 45 milhões de habitantes, redescobre sua antiga individualidade, dissociada em definitivo do império comandado pela czarina Catarina 2ª e sobretudo não mais remetendo à extinta União Soviética.
Tudo isso contrasta com a posição de Putin expressa no texto de julho do ano passado, para quem a Ucrânia não dispõe de uma história própria. Num segundo momento, o político também afirma que o vizinho deveria se voltar mais para a Rússia, não para a União Europeia ou os EUA. O que leva Plokhii a afirmar que, sem história ou legitimidade, Kiev não tem o direito a existir.
Há uma clara analogia com "1984", de George Orwell, para quem o controle do passado é também o controle do presente.
E Plokhii volta à questão da identidade: "Os ucranianos não estão apenas guerreando pela independência de seu Estado. Estão também lutando pela sobrevivência de sua identidade, já que a Rússia no passado tentou aniquilar a Ucrânia para submetê-la a sua influência cultural".
Nem sempre essa percepção é nítida. Durante séculos a Rússia e a Ucrânia atuaram juntas. Ainda hoje famílias se dividem dos dois lados da fronteira. Mas os ucranianos sempre cultivaram as raízes de seu sentido de autonomia e independência, diz o professor de Harvard.
Vejamos um pouco de história. Durante a alta Idade Média as bacias hidrográficas ucranianas atraíram da Escandinávia os vikings, também chamados de rus —donde vem a palavra Rússia. Outras etnias chegaram, uma delas a dos eslavos. No século 13 a região caiu sob controle dos mongóis, que destruíram os postos de comércio do Estado dos Rus. É na luta contra os mongóis, diz o historiador de Harvard, que a identidade ucraniana começa a se formar. A estepe euroasiática esboçava seu atual contorno político.
Plokhii insiste no fato de a moderna Ucrânia nascer com a chegada de um novo personagem na demografia do Leste Europeu. Foram os cossacos, não mais os vikings ou os rus. Há uma diferença entre os cossacos ucranianos e os russos: os primeiros foram capazes de criar um Estado próprio, por volta do século 17, que é de início independente e a seguir se associa à Rússia, até o final do século 18.
A palavra cossaco vem do turco e significa homens livres. Eram excelentes cavaleiros, agressivos e responsáveis pelo extermínio de dezenas de milhares de judeus da Ucrânia no século 17. Em termos de identidade cultural, esse grupo estimulou a literatura e o ensino da ciência. Tinham ainda seu próprio Exército e instituições burocráticas, depois incorporadas ao Império da Rússia.
O importante é o diferencial de identidade que os rus e os cossacos deram aos povos que se julgam hoje ucranianos. Eles sabem que têm menos a ver com a identidade russa. Reivindicam uma diferença que agora firmam por meio da guerra.
Um dos tópicos que o podcast da NPR não explora em profundidade é o peso que a Ucrânia ainda carrega por seu passado soviético. Ao ser criada, em 1922, a URSS exerceu o nivelamento entre as repúblicas que a integravam. A Ucrânia passou a ser um quintal em que a Rússia exercia sua alta tecnologia —a nuclear e sobretudo a bélica. Os ucranianos mereciam uma confiança e uma cumplicidade que inexistiam, por exemplo, com relação às repúblicas bálticas ou à Tchetchênia.
O fato é que os ucranianos foram grudados à Rússia pelo comunismo. E é por isso que Vladimir Putin se sente injustamente no direito de tratar a Ucrânia como uma periferia umbilicalmente grudada a Moscou. O que, em definitivo, o professor Plokhii insiste que não é verdade.
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