Analistas do Ocidente debruçados sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia têm recorrido a representações geopolíticas que relacionam o conflito a uma reação do presidente russo, Vladimir Putin, a movimentações dos EUA e da Europa. Para o antropólogo ucraniano Volodimir Artiukh, 36, pesquisador da Universidade Oxford (Reino Unido), essas considerações erram o alvo.
"O Ocidente, e em especial os americanos, enxergam tudo como reflexo do que ocorre nos EUA e na Europa", critica Artiukh, que é doutor em sociologia pela Universidade Centro-Europeia (CEU) e se dedica ao estudo de movimentos migratórios no mundo pós-soviético.
Para ele, o ataque russo "tem menos a ver com ameaças diretas da Otan e mais com a percepção de fraqueza dos principais poderes ocidentais, como EUA e Alemanha", que trocaram suas lideranças mais recentemente e estariam menos articulados.
Artiukh avalia que o avanço da Otan não serve como chave explicativa única para a guerra. Não só porque não havia sinal de que a Ucrânia seria aceita na aliança num futuro próximo, mas também porque o ataque de Putin está reforçando a presença militar no entorno da Rússia e a propensão de países neutros a cooperar com a Otan. "É o contrário do que um país com medo da Otan quer."
O pesquisador avalia ser possível uma escalada de violência antes de qualquer desfecho e não descarta a possibilidade do uso de armas nucleares. Ele defende ainda que Europa e EUA ofereçam ajuda humanitária "pelo menos na mesma proporção com que fornecem armamentos de guerra".
A família de Artiukh está presa na Ucrânia. "Eles não conseguiram escapar", lamenta. "Tenho me dedicado a analisar o conflito também para me manter emocionalmente distante disso. É muito difícil."
A expansão da Otan tem sido, para muitos, a chave explicativa da guerra. Quais são os limites dessa análise? A história da Otan remonta ao cenário global do final da Segunda Guerra e é anterior à queda do regime soviético. Ou seja, a Otan já existia antes da própria Rússia moderna, e as relações entre a organização e o Estado russo já somam 30 anos.
A maior parte da expansão da Otan ocorreu depois dos anos 2000, já durante o mandato de Putin. E os primeiros movimentos dessa expansão não ensejaram nenhuma resposta violenta da Rússia. Nos anos recentes, não houve expansão significativa da Otan. E a Ucrânia não estava, sob nenhum ponto de vista, perto de se tornar um Estado-membro. Todas as lideranças políticas expressam claramente: a Ucrânia não será admitida na Otan num futuro próximo. Então, é claro que essa expansão contribuiu para aumentar a tensão na região, mas não foi uma causa imediata para a deflagração do conflito.
Quais foram essas causas, então? O interesse russo em controlar a política externa e interna dos Estados vizinhos. E, como a Ucrânia é o maior desses vizinhos na Europa, a Rússia quer controlá-la. Primeiro, tentou fazer isso indiretamente, de 1991 até 2014. Quando essas tentativas falharam, primeiro os russos investiram numa guerra proxy [instigada pela Rússia, mas da qual não tomou parte] e, agora, chegaram a uma intervenção direta.
Tudo se resume ao fracasso do soft power russo na Ucrânia e à inabilidade russa de usar instrumentos econômicos, o que forçou o país ao poder militar e à violência. O ataque russo tem menos a ver com ameaças diretas da Otan e mais com a percepção de fraqueza dos principais poderes Ocidentais, como os EUA e a Alemanha.
Como assim? Foi um período em que as eleições presidenciais nos EUA levaram ao poder uma liderança percebida como fraca, Joe Biden. E, na Alemanha, Angela Merkel estava deixando o poder. Então, a Rússia viu isso como uma oportunidade de fazer algo na expectativa de que o Ocidente não tivesse condições de articular uma resposta militar unificada e robusta.
Um ataque motivado pelo avanço da Otan seria diferente? A invasão da Ucrânia levou a consequências que contradizem esse suposto objetivo de deter a Otan. Ela aumentou de forma dramática a unidade em torno da Otan e a militarização dos países do entorno russo. O ataque russo provavelmente levará a um aumento da cooperação com a Otan por parte de países antes neutros, como a Finlândia. É o contrário do que um país com medo da Otan quer.
Além de não resolver nada, Putin criou mais problemas. Não acredito que o ataque tenha sido uma reação à Otan, mas uma ação para reconfigurar o ambiente de segurança ao redor da Rússia e para criar uma aliança com a China.
Quais são os limites dessa aliança com a China? A Rússia está buscando seu novo lugar no mundo para os próximos dez ou 20 anos. As elites russas acreditam que o mundo será multipolar e que a China será o novo grande poder global. Pequim está tentando permanecer neutra e se absteve de votar no Conselho de Segurança. Há sinais de que ela pode vender armas para a Rússia e se tornar uma aliada militar, mas não podemos excluir a possibilidade de a Rússia ter errado também esse cálculo, especialmente se considerarmos que as operações russas eram baseadas em suposições erradas. A Rússia tem serviços de inteligência muito fracos hoje em dia.
Fracos? Sim, e é um grande paradoxo. A Ucrânia e a Rússia são muito próximas em termos linguísticos e culturais. Não era de se esperar que os russos tivessem errado tanto no cálculo da resistência ucraniana. Ainda que a Rússia seja uma das maiores forças militares do planeta, em termos quantitativos e tecnológicos, eles não conseguiram derrotar o Exército da Ucrânia, o que evidencia suas falhas de inteligência.
Como avalia os argumentos usados por Putin para a invasão, tais como desnazificação e desmilitarização da Ucrânia? Não entendo direito esses conceitos e como seriam operacionalizados. Desmilitarização costuma ser a consequência de um acordo de paz, e isso se traduziu em simplesmente bombardear a Ucrânia. Desnazificação também é algo difícil de entender. Para a elite russa, o presidente ucraniano é uma marionete dos poderes do Ocidente e, simultaneamente, de forças nazistas e fascistas no país —ainda que Zelenski seja judeu, o que torna o raciocínio estranho.
É verdade que existe um movimento de fascistas na Ucrânia: não são numerosos, mas são influentes, e estão integrados a unidades policiais e às Forças Armadas. Essa não é uma história incomum na Europa. A ascensão do fascismo tem ocorrido em países como a Alemanha e até o Brasil. É uma justificativa ideológica fácil de ser explicada à população devido à memória da resistência russa ao fascismo. "Não estamos lutando contra ucranianos, mas contra fascistas." E ninguém precisa provar nada.
Putin pode estar em busca de restaurar as fronteiras da ex-União Soviética ou mesmo do Império Russo? Putin é conhecido por dizer que o colapso da União Soviética foi um dos grandes desastres do século. Ao mesmo tempo, é encantado pelo Império Russo, especialmente pelo czar Alexandre 3º [um conservador]. O jeito como ele fala de Lênin e da Revolução Russa... Parece que a Revolução de Outubro [de 1917] foi a pior coisa. Putin culpa Lênin pela destruição do Império Russo ao fragmentar sua unidade, criando Estados, como a Ucrânia, que tinham alguma independência. Para ele, Lênin plantou uma bomba na Rússia, causando sua destruição. Então, é para esse tempo do império que ele gostaria de voltar.
E não os tempos de União Soviética... Putin é um liberal em termos econômicos. Se você observar como o Banco Central russo conduz a política monetária conservadora e para como o Estado funciona em termos de cooperação e de regulação do trabalho, ou mesmo se você olhar para a desigualdade extrema da Rússia, vai ver que não tem nada a ver com a história soviética. Hoje temos o mesmo nível de desigualdade da época do império.
O projeto de Putin é imperial e não vai oferecer uma ideologia alternativa de modernização. Ele vai oferecer proteção, ou mesmo impor proteção, para lideranças como a da Belarus [o ditador Aleksandr Lukachenko] e da Armênia [o premiê Nikol Pashinian], que querem se proteger do Ocidente. Os Estados que não são clientes da Rússia e não querem proteção serão controlados por outros meios, seja indiretamente, como quando Estados-clientes foram arrancados de países como a Geórgia [em 2008] e a Ucrânia, em 2014 [quando da anexação da Crimeia], ou de forma direta, simplesmente atacando e ocupando territórios, como fez o Império Russo no século 19.
Como a Ucrânia entra na guerra de desinformação travada em paralelo às batalhas nos territórios? A Ucrânia está em conflito com a Rússia desde 2014, na anexação da Crimeia. Desde então, os dois países reprimiram muito a imprensa livre, ainda que de maneiras diferentes: Rússia foi mais sistemática, e a Ucrânia, mais seletiva. O cenário de mídia ficou muito empobrecido nos dois países e foi tomado por visões unidimensionais e por muito mais propaganda do que notícias e análises.
Os países passaram os últimos oito anos em guerras de informação, quando adotaram também o conceito de guerra híbrida. Ainda que Ucrânia e Rússia não estivessem em confronto militar direto nesses oito anos, como em 2014, dizem estar numa guerra híbrida porque usavam todos os meios possíveis exceto a intervenção militar direta. Isso criou um ambiente de paranoia em que todos os laços da sua vida se baseiam em segurança, que torna todos propensos a buscar espiões, traidores etc. É nesse ambiente que esses países estão há quase uma década. E isso leva a um cenário informacional totalmente insalubre, em detrimento de qualquer análise crítica e de qualquer esforço para um compromisso de paz.
Que mundo vai emergir da guerra na Ucrânia? Existem duas possibilidades. Primeira, e mais provável, é a Rússia destruir as defesas da Ucrânia e ocupar uma parte significativa do território ou mesmo todo ele, instalando uma liderança que é sua marionete ou mesmo vários governos repressivos que seriam essencialmente Estados policiais. A própria Rússia se tornará um regime ainda mais autoritário e verá sua economia cair em profunda recessão, que leva a um descontentamento geral.
A segunda opção é a Rússia perder e ter de assinar algum acordo de paz temporário. A Rússia terá de retirar as tropas e encarar o tumulto que deve emergir internamente, o que inclui uma crise política no Kremlin porque, basicamente, Putin não terá atingido nenhum objetivo e ainda terá perdido muito com as sanções. O que acontecerá com a Ucrânia nesse cenário é totalmente imprevisível, mas deve vir acompanhado de uma crise política e econômica.
O PIB da Ucrânia deve cair até 50%, e o país está num buraco. Já tem dívidas imensas com o FMI [Fundo Monetário Internacional] e outros credores internacionais. Como o país vai ou não se reerguer depende do quanto o Ocidente vai oferecer de suporte.
Raio-X | Volodimir Artiukh
Antropólogo e pesquisador da Universidade Oxford, no Reino Unido, onde atua no projeto Emptiness: Living Capitalism and Democracy after (Post) Socialism. Nascido na Ucrânia dos anos 1980, é doutor em sociologia e antropologia social pela Universidade Centro-Europeia (CEU), em Budapeste (Hungria). Estuda trabalho e movimentos migratórios de países da ex-União Soviética, como Ucrânia e Belarus.
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