Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Putin quer aumentar área de influência, não impedir avanço da Otan, diz analista ucraniano

Volodimir Artiukh diz que presidente, encantado pelo Império Russo, aposta em desarticulação do Ocidente

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São Paulo

Analistas do Ocidente debruçados sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia têm recorrido a representações geopolíticas que relacionam o conflito a uma reação do presidente russo, Vladimir Putin, a movimentações dos EUA e da Europa. Para o antropólogo ucraniano Volodimir Artiukh, 36, pesquisador da Universidade Oxford (Reino Unido), essas considerações erram o alvo.

"O Ocidente, e em especial os americanos, enxergam tudo como reflexo do que ocorre nos EUA e na Europa", critica Artiukh, que é doutor em sociologia pela Universidade Centro-Europeia (CEU) e se dedica ao estudo de movimentos migratórios no mundo pós-soviético.

Homem passa por grafite do presidente russo Vladimir Putin em Sófia, na Bulgária - Nikolai Doitchinov - 15.mar.22/AFP

Para ele, o ataque russo "tem menos a ver com ameaças diretas da Otan e mais com a percepção de fraqueza dos principais poderes ocidentais, como EUA e Alemanha", que trocaram suas lideranças mais recentemente e estariam menos articulados.

Artiukh avalia que o avanço da Otan não serve como chave explicativa única para a guerra. Não só porque não havia sinal de que a Ucrânia seria aceita na aliança num futuro próximo, mas também porque o ataque de Putin está reforçando a presença militar no entorno da Rússia e a propensão de países neutros a cooperar com a Otan. "É o contrário do que um país com medo da Otan quer."

O pesquisador avalia ser possível uma escalada de violência antes de qualquer desfecho e não descarta a possibilidade do uso de armas nucleares. Ele defende ainda que Europa e EUA ofereçam ajuda humanitária "pelo menos na mesma proporção com que fornecem armamentos de guerra".

A família de Artiukh está presa na Ucrânia. "Eles não conseguiram escapar", lamenta. "Tenho me dedicado a analisar o conflito também para me manter emocionalmente distante disso. É muito difícil."

A expansão da Otan tem sido, para muitos, a chave explicativa da guerra. Quais são os limites dessa análise? A história da Otan remonta ao cenário global do final da Segunda Guerra e é anterior à queda do regime soviético. Ou seja, a Otan já existia antes da própria Rússia moderna, e as relações entre a organização e o Estado russo já somam 30 anos.

A maior parte da expansão da Otan ocorreu depois dos anos 2000, já durante o mandato de Putin. E os primeiros movimentos dessa expansão não ensejaram nenhuma resposta violenta da Rússia. Nos anos recentes, não houve expansão significativa da Otan. E a Ucrânia não estava, sob nenhum ponto de vista, perto de se tornar um Estado-membro. Todas as lideranças políticas expressam claramente: a Ucrânia não será admitida na Otan num futuro próximo. Então, é claro que essa expansão contribuiu para aumentar a tensão na região, mas não foi uma causa imediata para a deflagração do conflito.

Quais foram essas causas, então? O interesse russo em controlar a política externa e interna dos Estados vizinhos. E, como a Ucrânia é o maior desses vizinhos na Europa, a Rússia quer controlá-la. Primeiro, tentou fazer isso indiretamente, de 1991 até 2014. Quando essas tentativas falharam, primeiro os russos investiram numa guerra proxy [instigada pela Rússia, mas da qual não tomou parte] e, agora, chegaram a uma intervenção direta.

Tudo se resume ao fracasso do soft power russo na Ucrânia e à inabilidade russa de usar instrumentos econômicos, o que forçou o país ao poder militar e à violência. O ataque russo tem menos a ver com ameaças diretas da Otan e mais com a percepção de fraqueza dos principais poderes Ocidentais, como os EUA e a Alemanha.

Como assim? Foi um período em que as eleições presidenciais nos EUA levaram ao poder uma liderança percebida como fraca, Joe Biden. E, na Alemanha, Angela Merkel estava deixando o poder. Então, a Rússia viu isso como uma oportunidade de fazer algo na expectativa de que o Ocidente não tivesse condições de articular uma resposta militar unificada e robusta.

Um ataque motivado pelo avanço da Otan seria diferente? A invasão da Ucrânia levou a consequências que contradizem esse suposto objetivo de deter a Otan. Ela aumentou de forma dramática a unidade em torno da Otan e a militarização dos países do entorno russo. O ataque russo provavelmente levará a um aumento da cooperação com a Otan por parte de países antes neutros, como a Finlândia. É o contrário do que um país com medo da Otan quer.

Além de não resolver nada, Putin criou mais problemas. Não acredito que o ataque tenha sido uma reação à Otan, mas uma ação para reconfigurar o ambiente de segurança ao redor da Rússia e para criar uma aliança com a China.

Quais são os limites dessa aliança com a China? A Rússia está buscando seu novo lugar no mundo para os próximos dez ou 20 anos. As elites russas acreditam que o mundo será multipolar e que a China será o novo grande poder global. Pequim está tentando permanecer neutra e se absteve de votar no Conselho de Segurança. Há sinais de que ela pode vender armas para a Rússia e se tornar uma aliada militar, mas não podemos excluir a possibilidade de a Rússia ter errado também esse cálculo, especialmente se considerarmos que as operações russas eram baseadas em suposições erradas. A Rússia tem serviços de inteligência muito fracos hoje em dia.

Fracos? Sim, e é um grande paradoxo. A Ucrânia e a Rússia são muito próximas em termos linguísticos e culturais. Não era de se esperar que os russos tivessem errado tanto no cálculo da resistência ucraniana. Ainda que a Rússia seja uma das maiores forças militares do planeta, em termos quantitativos e tecnológicos, eles não conseguiram derrotar o Exército da Ucrânia, o que evidencia suas falhas de inteligência.

Como avalia os argumentos usados por Putin para a invasão, tais como desnazificação e desmilitarização da Ucrânia? Não entendo direito esses conceitos e como seriam operacionalizados. Desmilitarização costuma ser a consequência de um acordo de paz, e isso se traduziu em simplesmente bombardear a Ucrânia. Desnazificação também é algo difícil de entender. Para a elite russa, o presidente ucraniano é uma marionete dos poderes do Ocidente e, simultaneamente, de forças nazistas e fascistas no país —ainda que Zelenski seja judeu, o que torna o raciocínio estranho.

É verdade que existe um movimento de fascistas na Ucrânia: não são numerosos, mas são influentes, e estão integrados a unidades policiais e às Forças Armadas. Essa não é uma história incomum na Europa. A ascensão do fascismo tem ocorrido em países como a Alemanha e até o Brasil. É uma justificativa ideológica fácil de ser explicada à população devido à memória da resistência russa ao fascismo. "Não estamos lutando contra ucranianos, mas contra fascistas." E ninguém precisa provar nada.

Putin pode estar em busca de restaurar as fronteiras da ex-União Soviética ou mesmo do Império Russo? Putin é conhecido por dizer que o colapso da União Soviética foi um dos grandes desastres do século. Ao mesmo tempo, é encantado pelo Império Russo, especialmente pelo czar Alexandre 3º [um conservador]. O jeito como ele fala de Lênin e da Revolução Russa... Parece que a Revolução de Outubro [de 1917] foi a pior coisa. Putin culpa Lênin pela destruição do Império Russo ao fragmentar sua unidade, criando Estados, como a Ucrânia, que tinham alguma independência. Para ele, Lênin plantou uma bomba na Rússia, causando sua destruição. Então, é para esse tempo do império que ele gostaria de voltar.

E não os tempos de União Soviética... Putin é um liberal em termos econômicos. Se você observar como o Banco Central russo conduz a política monetária conservadora e para como o Estado funciona em termos de cooperação e de regulação do trabalho, ou mesmo se você olhar para a desigualdade extrema da Rússia, vai ver que não tem nada a ver com a história soviética. Hoje temos o mesmo nível de desigualdade da época do império.

O projeto de Putin é imperial e não vai oferecer uma ideologia alternativa de modernização. Ele vai oferecer proteção, ou mesmo impor proteção, para lideranças como a da Belarus [o ditador Aleksandr Lukachenko] e da Armênia [o premiê Nikol Pashinian], que querem se proteger do Ocidente. Os Estados que não são clientes da Rússia e não querem proteção serão controlados por outros meios, seja indiretamente, como quando Estados-clientes foram arrancados de países como a Geórgia [em 2008] e a Ucrânia, em 2014 [quando da anexação da Crimeia], ou de forma direta, simplesmente atacando e ocupando territórios, como fez o Império Russo no século 19.

Como a Ucrânia entra na guerra de desinformação travada em paralelo às batalhas nos territórios? A Ucrânia está em conflito com a Rússia desde 2014, na anexação da Crimeia. Desde então, os dois países reprimiram muito a imprensa livre, ainda que de maneiras diferentes: Rússia foi mais sistemática, e a Ucrânia, mais seletiva. O cenário de mídia ficou muito empobrecido nos dois países e foi tomado por visões unidimensionais e por muito mais propaganda do que notícias e análises.

Os países passaram os últimos oito anos em guerras de informação, quando adotaram também o conceito de guerra híbrida. Ainda que Ucrânia e Rússia não estivessem em confronto militar direto nesses oito anos, como em 2014, dizem estar numa guerra híbrida porque usavam todos os meios possíveis exceto a intervenção militar direta. Isso criou um ambiente de paranoia em que todos os laços da sua vida se baseiam em segurança, que torna todos propensos a buscar espiões, traidores etc. É nesse ambiente que esses países estão há quase uma década. E isso leva a um cenário informacional totalmente insalubre, em detrimento de qualquer análise crítica e de qualquer esforço para um compromisso de paz.

Que mundo vai emergir da guerra na Ucrânia? Existem duas possibilidades. Primeira, e mais provável, é a Rússia destruir as defesas da Ucrânia e ocupar uma parte significativa do território ou mesmo todo ele, instalando uma liderança que é sua marionete ou mesmo vários governos repressivos que seriam essencialmente Estados policiais. A própria Rússia se tornará um regime ainda mais autoritário e verá sua economia cair em profunda recessão, que leva a um descontentamento geral.

A segunda opção é a Rússia perder e ter de assinar algum acordo de paz temporário. A Rússia terá de retirar as tropas e encarar o tumulto que deve emergir internamente, o que inclui uma crise política no Kremlin porque, basicamente, Putin não terá atingido nenhum objetivo e ainda terá perdido muito com as sanções. O que acontecerá com a Ucrânia nesse cenário é totalmente imprevisível, mas deve vir acompanhado de uma crise política e econômica.

O PIB da Ucrânia deve cair até 50%, e o país está num buraco. Já tem dívidas imensas com o FMI [Fundo Monetário Internacional] e outros credores internacionais. Como o país vai ou não se reerguer depende do quanto o Ocidente vai oferecer de suporte.


Raio-X | Volodimir Artiukh

Antropólogo e pesquisador da Universidade Oxford, no Reino Unido, onde atua no projeto Emptiness: Living Capitalism and Democracy after (Post) Socialism. Nascido na Ucrânia dos anos 1980, é doutor em sociologia e antropologia social pela Universidade Centro-Europeia (CEU), em Budapeste (Hungria). Estuda trabalho e movimentos migratórios de países da ex-União Soviética, como Ucrânia e Belarus.

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