Polônia retoma apartamentos que foram de espiões russos para abrigar ucranianos

Cercado de mistérios, complexo foi erguido nos anos 1970 para diplomatas soviéticos e seguiu sob controle russo

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Andrew Higgins
Varsóvia | The New York Times

Diplomatas soviéticos deixaram o grande complexo de apartamentos em Varsóvia mais de 30 anos atrás.

Mas alguns russos permaneceram até o início dos anos 2000, protegidos por um muro coroado com arame farpado de uma cidade que, com a queda de seu império, se convertera de repente em território hostil –e importante alvo de seus serviços de inteligência.

Um romance policial barato russo deixado para trás dentro do imóvel agora decrépito talvez forneça uma pista sobre as preocupações dos russos que viveram no complexo, conhecido como ninho de espiões desde sua época áurea, nos anos 1980: "Partida num Campo Estrangeiro".

"O complexo sempre foi chamado de Spyville [cidade de espiões], e muitos desses caras eram espiões de fato", disse o prefeito de Varsóvia, Rafal Trzaskowski.

Antigo complexo habitacional diplomático soviético abandonado em Varsóvia
Antigo complexo habitacional diplomático soviético abandonado em Varsóvia - Maciek Nabrdalik - 27.abr.22/The New York Times

Farto da recusa da Rússia em abrir mão do imóvel, apesar das decisões judiciais de que Moscou não tinha mais direitos sobre o local, no mês passado o prefeito retomou o imóvel, declarando que quer usá-lo para abrigar ucranianos em vez de russos. Trzaskowski disse que o número de diplomatas russos em Varsóvia vem caindo há décadas, acelerado pela expulsão recente de 45 suspeitos de espionagem.

"Eles não precisavam de uma infraestrutura tão grande, mas queriam conservar o controle do local", disse. "É por isso que estávamos brigando com eles para retomá-lo."

Construído no final dos anos 1970 para alojar funcionários da embaixada soviética na época em que a Polônia ainda era membro do Pacto de Varsóvia e território comunista aparentemente obediente, Spyville foi oficialmente esvaziada dos diplomatas e suas famílias quando o império soviético ruiu, no final dos anos 1980, mas continuou em mãos russas.

Uma boate dissoluta aberta apenas a russos e seus convidados operou no local por algum tempo, mas o complexo, formado por um conjunto de edifícios de concreto que cercam um laguinho fétido, tem sido associado principalmente à espionagem.

Exploradores urbanos poloneses que entraram no imóvel sem autorização encontraram jornais russos até de 2005, muito tempo depois de os russos terem supostamente partido. O fato reforça a reputação do complexo de ser local de bandidagem e trapaças ocultas.

Marcado pelo mistério e pela decadência, Spyville era também um posto avançado, pequeno e profundamente indesejado do chamado "mundo russo", um conceito territorial e ideológico muito prezado por Vladimir Putin, o presidente da Rússia.

Putin utilizou esse conceito para tentar justificar sua invasão da Ucrânia, alegando que o país era uma parte inalienável da Rússia. Mas a ideia de que a Rússia –por motivos linguísticos, históricos, legais ou outros— teria o direito de controlar pedaços de terra estrangeira se estende para muito além da Ucrânia, chegando a pontos diversos que o Kremlin considera que lhe pertencem.

Em seus primeiros anos no poder, Putin seguiu o exemplo de seu antecessor, Boris Ieltsin, e cedeu postos avançados no exterior que já não tinham nenhuma finalidade evidente ou cuja manutenção era muito cara. Entre eles havia um posto de escuta em Cuba e uma base naval no Iêmen.

De lá para cá, porém, Putin vem seguindo um rumo muito diferente, fazendo pressão para recuperar propriedades perdidas, incluindo o posto de espionagem em Cuba que havia abandonado em 2001, um cemitério na Riviera Francesa contendo sepulturas russas dos tempos czaristas, uma igreja em Jerusalém e outros locais que ele considera que pertencem ao "russki mir" –o mundo russo.

Ao mesmo tempo ele tem resistido a abrir mão de qualquer coisa que a Rússia ainda controla no exterior, frustrando os esforços japoneses para negociar a devolução, pelo menos parcial, de ilhas tomadas por Moscou no final da Segunda Guerra Mundial e obstruindo a reivindicação polonesa, apoiada por decisões judiciais, de que Spyville fosse devolvida à Polônia.

Frustrada pela recusa de Moscou em entregar a propriedade em Varsóvia, que a Rússia alugava sob um acordo selado na era soviética, no mês passado o prefeito Trzaskowski entrou no complexo pela primeira vez, com a ajuda de um chaveiro munido de cortadeira de metal e uma serra elétrica e acompanhado do embaixador ucraniano, além de um oficial de justiça.

"Spyville está passando para as nossas mãos", declarou o prefeito. Guardas de segurança contratados pela embaixada russa não resistiram, como tampouco fez um representante da embaixada. O embaixador russo em Varsóvia, Serguei Andreev, denunciou para a mídia estatal russa mais tarde a "ocupação" ilegal de um local diplomático pelo prefeito.

O prefeito nada mais fez do que implementar decisões judiciais de 2016 e do mês passado, todas ignoradas por Moscou, que invalidaram a reivindicação de controle russo. Os russos insistem que honraram os termos do contrato de aluguel; os poloneses dizem que não o fizeram.

"O tribunal decidiu que o imóvel foi alugado pelo Estado polonês e que o contrato de aluguel terminou. Se vocês estão alugando um imóvel e não o usam há quase 20 anos, isso evidentemente significa que não precisam mais dele", disse o prefeito.

Como Estado sucessor da União Soviética, a Rússia herdou mais de 20 propriedades em Varsóvia dadas ou alugadas a Moscou durante a era comunista. Uma destas, da qual Moscou também lutou para não abrir mão, hoje abriga a embaixada da Ucrânia.

Trzaskowski disse que seu plano inicial era converter a propriedade recuperada em abrigo para refugiados da Ucrânia, dos quais a Polônia já acolheu quase 3 milhões. Mas ele encontrou Spyville em estado de decadência tão grande –todos os cabos dos elevadores foram cortados, e um dos edifícios não está em condições de segurança estrutural— que engenheiros agora terão que decidir se os edifícios, o mais alto dos quais tem 11 pisos, podem ser salvos ou precisarão ser demolidos.

Seja qual for a decisão tomada, o prefeito disse que o complexo "vai definitivamente ser usado para a comunidade ucraniana", de uma maneira ou de outra. Sobre isso, ele falou, as autoridades municipais e o governo central polonês, que de outro modo concordam sobre pouco e se desentendem frequentemente, "estão em sintonia".

Tradução de Clara Allain

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