Descrição de chapéu Financial Times

Megacidades pobres deveriam investir em postos de recarga para bikes elétricas, não em avenidas

Grandes centros urbanos tendem a ser projetados para pessoas ricas que têm condições de possuir carro

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Simon Kuper
Financial Times

Numa foto espantosa de Xangai feita em 1991, multidões de ciclistas atravessam uma ponte a caminho do trabalho. Os únicos veículos motorizados visíveis são dois ônibus. Essa era a China dos anos 1990: um "Reino da Bicicleta" em que 670 milhões de pessoas possuíam bicicleta. Os governantes ainda estavam seguindo a orientação de Deng Xiaoping, que definiu a prosperidade como "uma bicicleta da Flying Pigeon [fabricante estatal chinesa] em cada casa".

Hoje a China é o reino das rodovias de oito pistas. A maioria das megacidades de baixa e média renda pelo mundo afora abandonaram a bicicleta, mas agora precisam recuperá-la. As chamadas megacidades modernas (definidas como aglomerados de pelo menos 10 milhões de habitantes) são os maiores assentamentos humanos da história –e estão crescendo sem parar.

O mundo tinha dez megacidades em 1990 e 33 em 2018; segundo as Nações Unidas, terá 43 até o ano 2030. Mais de um terço do crescimento demográfico se dará na Índia, China e Nigéria. Mais carros significarão mais congestionamentos e mais efeitos nocivos às pessoas, ao planeta e à vida urbana. Felizmente, é perfeitamente viável que esses lugares voltem a tornar-se reinos da bicicleta.

Carros parados em trânsito de Xangai, na China
Carros parados em trânsito de Xangai, na China - Aly Song - 10.mar.2021/Reuters

Por enquanto, as megacidades mais pobres tendem a ser projetadas para pessoas ricas que têm condições de possuir carro. Na Índia, isso significa uma família em cada 12. Frequentemente os prefeitos encontram verbas para construir vias rápidas, mas não ciclovias ou mesmo calçadas.

Nos países de renda mais baixa a bicicleta tende a ser estigmatizada, vista como um veículo de pobres; nas cidades ricas ela é estigmatizada por ser vista como brinquedo de pessoas moderninhas. Muitos moradores das megacidades mais pobres sonham em viver em Los Angeles e possuir um SUV. Por enquanto, porém, eles podem passar horas a cada dia parados em símbolos de status imóveis que às vezes custam mais do que eles ganham, especialmente agora, com os preços da gasolina em alta.

Quanto mais carros, menor é a mobilidade. Em Istambul, que segundo a fabricante de aparelhos GPS TomTom é a cidade mais congestionada do mundo, a média de tempo perdido por cada pessoa no trânsito em um ano foi de 142 horas. Os habitantes de Moscou, Bogotá, Mumbai e Nova Déli todos perderam mais de cem horas. No Quênia, a rodovia entre Mombasa e Nairóbi já chegou a sofrer um engarramento de três dias.

E há as emissões de carbono, o 1,3 milhão de pessoas mortas todos os anos em acidentes de trânsito e os estimados 4,2 milhões que morrem de modo precoce devido à poluição do ar externo, a maioria em países pobres.

A título de comparação, o total global anual de mortes por homicídio e em conflitos armados é cerca de meio milhão de pessoas. Somem-se ainda os números assustadores de pessoas que vivem em cidades dominadas por carros e que terão morte precoce porque quase não fazem exercício físico: estimados 77 milhões de indianos são diabéticos, e a maioria nem tem consciência disso. Carros são serial killers.

As megacidades mais pobres que querem diminuir a circulação de automóveis raramente têm condições financeiras de construir linhas de metrô. Em Londres, a rede ferroviária Crossrail, cuja construção foi aventada primeiramente em 1974 e aprovada em 1990 e que não passa de um acréscimo à rede já existente do metrô, foi aberta finalmente e custou £ 19 bilhões (R$ 116 bilhões). Paris está gastando ainda mais com a ampliação de sua rede de metrô. Sairia mais barato dar uma bicicleta elétrica gratuita a cada cidadão que precisa dela para deslocar-se diariamente para o trabalho ou escola.

Inspiradas pelo boom de bicicletas em capitais ocidentais de alto status, muitas cidades pobres vêm criando planos de ciclismo recentemente. Mas ainda têm medo demais dos motoristas para implementar os planos, diz o urbanista Gil Peñalosa, que ajudou a levar bicicletas a Bogotá.

Mesmo assim, Nairóbi, Jacarta, Adis Abeba e Pequim são algumas das cidades que vêm ampliando sua rede de ciclovias. A bicicleta elétrica é um divisor de águas, algo muito mais significativo que o carro elétrico, caro, insuficientemente verde e excessivamente elogiado: as vendas globais de e-bikes estão projetadas para chegar a 40 milhões de unidades em 2023, contra 9 milhões no caso dos carros elétricos. Em todo o mundo, a maioria dos deslocamentos não chega a 10 quilômetros, distância que uma e-bike consegue cobrir em meia hora, segundo o Institute for Transportation & Development Policy.

Muitas megacidades ainda estão em fase suficientemente inicial de seu desenvolvimento para poderem evitar o desvio equivocado em direção aos carros seguido pelas cidades europeias após a guerra. Os prefeitos deveriam estar construindo infraestrutura de recarga de e-bikes, não mais avenidas arteriais.

O calor constitui um desincentivo ao ciclismo em algumas cidades, mas o problema às vezes é sobrestimado. Daca, com seu clima quente e úmido, é há anos a capital mundial dos riquixás; a maioria das famílias indianas ainda possui bicicletas, e os verões quentes de Xangai não impediam ciclistas de sair às ruas em 1991. Algumas soluções possíveis para driblar o calor pior talvez sejam organizar caronas coletivas, colocar ônibus extras nas ruas ou adiantar o horário de trabalho durante o verão.

Algumas pessoas têm medo de andar de bicicleta em cidades assoladas pelo crime, como Johannesurgo. Mas muitas pessoas em outras megacidades anseiam por andar de bicicleta. Quase metade dos chineses dizem que gostariam de usar bicicleta para ir e vir do trabalho diariamente, enquanto outros 37% prefeririam ciclomotores ou motonetas, segundo pesquisa da McKinsey. O passo seguinte, algo que já vem sendo feito em cidades de renda alta, é substituir os caminhões de entrega por bicicletas de carga.

Quantas vezes um denso emaranhado de problemas tem uma solução única, barata, verde, saudável e low-tech? As cidades inteligentes vão implementar essa solução.

Tradução de Clara Allain 

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