Tráfico de migrantes na fronteira dos EUA movimenta bilhões de dólares

Aumento expressivo do número de travessias impulsionado por medida do governo Trump atrai grandes cartéis mexicanos

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Miriam Jordan
Carrizo Springs (Texas) | The New York Times

Vista da rua, a casinha marrom era agradável, mas não chamava a atenção. Um caminhãozinho vermelho e um ônibus escolar amarelo de brinquedo estavam pendurados à cerca, e a fachada era enfeitada com uma grande estrela do Texas. Mas no quintal dos fundos havia um trailer decrépito que um promotor descreveria como "casa dos horrores".

O trailer foi descoberto em 2014, quando um homem telefonou de Maryland para denunciar que seu padrasto, Moisés Ferrera, migrante hondurenho, estava detido no local e sendo torturado pelos traficantes de pessoas que o haviam levado aos EUA. Seus captores queriam mais dinheiro. Estavam martelando as mãos de Ferrera e prometiam continuar até que sua família mandasse a quantia.

cerca à frente, casa marrom ao fundo
Casa que ficava na frente de um grande trailer, em que traficantes mantinham reféns centenas de migrantes - Christopher Lee - 17.jul.22/The New York Times

Quando agentes federais e outros policiais invadiram a casa, descobriram que Ferrera não era a única vítima. A investigação constatou que traficantes haviam feito centenas de migrantes reféns no local, mutilando pernas e braços e violentando mulheres. "O que veio à tona naquele lugar é algo digno de ficção científica, de um filme de horror –uma coisa que simplesmente não vemos nos Estados Unidos", disse o promotor Matthew Watters a um júri, quando os traficantes acusados foram a julgamento.

Segundo ele, cartéis do crime organizado "trouxeram o terror para este lado da fronteira".

Mas se aquele foi um dos primeiros desses casos, não seria o último. Nos últimos dez anos, o tráfico de migrantes na fronteira sul dos EUA, que começou como uma rede dispersa de "coiotes" freelancers, converteu-se em um negócio multibilionário internacional controlado pelo crime organizado, incluindo alguns dos mais violentos cartéis do narcotráfico mexicanos.

A morte de 53 migrantes em San Antonio no mês passado, comprimidos dentro de um caminhão sufocante, foi o incidente mais mortal até hoje envolvendo migrantes traficados no país. Ocorreu num momento em que o endurecimento das restrições na fronteira, exacerbadas por uma regra de saúde pública ligada à pandemia, vem levando mais pessoas a recorrer aos traficantes.

Não é de hoje que migrantes são alvos de sequestro e extorsão em cidades do lado mexicano, mas incidentes desse tipo vêm aumentando do lado americano, disseram autoridades federais.

Mais de 5.046 pessoas foram presas no ano passado, acusadas de tráfico de pessoas, contra 2.762 pessoas em 2014. De um ano para cá, agentes federais têm realizado invasões quase diárias de esconderijos nos quais dezenas de migrantes são mantidos em cativeiro.

O Título 42, decreto introduzido pela administração Trump no início da pandemia, autorizou a expulsão imediata de pessoas flagradas atravessando a fronteira ilegalmente, permitindo que os migrantes a atravessem repetidas vezes na esperança de eventualmente conseguir seu intento.

Isso levou a uma escalada no número de apreensões de migrantes –1,7 milhão no ano fiscal de 2021—, gerando movimento intensificado para os traficantes de pessoas.

Em um mesmo dia de março, perto de El Paso, no Texas, agentes resgataram 34 migrantes de dois contêineres sem ventilação. No mês seguinte, 24 pessoas foram encontradas em um esconderijo, detidas contra sua vontade.

Os casos de carros de polícia perseguindo traficantes em alta velocidade pelas ruas de Uvalde têm sido tão frequentes –houve quase 50 dessas ocorrências na cidade entre fevereiro e maio— que alguns funcionários da escola em que ocorreu um massacre em maio disseram que não levaram a sério a ordem para fechar na instituição, porque várias do tipo foram dadas quando traficantes fugiam pelas ruas.

Teófilo Valencia, cujos filhos de 17 e 19 anos morreram na tragédia em San Antonio, disse que contraiu um empréstimo, dando a casa de sua família como garantia, para pagar aos traficantes US$ 10 mil pelo transporte de cada um dos seus filhos.

Os valores cobrados geralmente variam entre US$ 4.000, para migrantes vindos da América Latina, e US$ 20 mil, se precisam ser transportados da África, do Leste Europeu ou da Ásia. A informação é da especialista em tráfico de pessoas Guadalupe Correa-Cabrera, da Universidade George Mason.

Durante anos, coiotes independentes pagaram uma taxa para deslocar os migrantes em território sob o controle dos cartéis, que concentravam suas ações sobre seu negócio tradicional: o tráfico de drogas, muito mais lucrativo. Mas a situação começou a mudar por volta de 2019, como disse ao Congresso em 2021 o vice-diretor interino da agência de Imigração e Alfândegas dos EUA, Patrick Lechleitner. Segundo ele, o número de pessoas que tentavam fazer a travessia converteu o tráfico de pessoas num atrativo.

Segundo a Homeland Security Investigations, agência federal que investiga esses casos, os cartéis têm equipes especializadas em logística, transportes, vigilância, cativeiros e contabilidade, todas contribuindo para uma indústria cuja receita subiu de US$ 500 milhões em 2018 para estimados US$ 13 bilhões hoje.

Os migrantes são transportados de avião, ônibus e veículos particulares. Em algumas regiões, como no estado mexicano de Tamaulipas, os traficantes colocam pulseiras codificadas por cores nos migrantes para designar que eles lhes pertencem e quais serviços recebem. "Eles estão organizando a mercadoria de maneiras que seriam inimagináveis cinco ou dez anos atrás", diz Correa-Cabrera.

Grupos de famílias centro-americanas que atravessaram o rio Grande recentemente para chegar a La Joya, no Texas, usavam pulseiras azuis com o logotipo do cartel do Golfo, um golfinho, e a palavra "entregas", indicando que pretendiam entregar-se às autoridades americanas e pedir asilo. Depois de realizar a travessia do rio, as pessoas deixam de ser responsabilidade do cartel.

Anteriormente, os migrantes que chegavam a Laredo, no Texas, atravessavam o rio por conta própria e então procuravam desaparecer na densa paisagem urbana. Hoje, segundo migrantes e autoridades policiais, é impossível fazer a travessia sem pagar a um coiote ligado ao cartel do Nordeste.

Os traficantes de pessoas muitas vezes recrutam adolescentes para transportar migrantes para esconderijos em bairros de classe trabalhadora. Depois de juntar algumas dezenas de pessoas, eles embarcam os migrantes em caminhões estacionados no imenso distrito de galpões industriais de Laredo. "Motoristas são recrutados em bares, casas de striptease e paradas de caminhões", diz Timothy Tubbs, que, até se aposentar, em janeiro, foi agente especial da Homeland Security Investigations.

Os caminhões somem, sem despertar suspeitas, no meio dos 20 mil veículos que diariamente transitam pela rodovia I-35 indo e vindo de Laredo, porto terrestre mais movimentado do país. Para não atrapalhar o fluxo, agentes da Patrulha da Fronteira inspecionam apenas uma parcela minúscula dos que passam.

O caminhão-reboque encontrado em 27 de junho com sua carga trágica havia passado por um posto de controle 50 km ao norte de Laredo, sem despertar suspeitas. Três horas mais tarde, quando parou numa estrada remota em San Antonio, a maioria das 64 pessoas já estava morta. O motorista, Homero Zamorano Jr., indiciado em conexão com a tragédia, disse não saber da pane no ar-condicionado.

Tradução de Clara Allain

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