Brasil suspende agendamento de visto para afegãos e é questionado por ONGs

Refugiados aguardam meses por entrevista em Islamabad e Teerã; Itamaraty nega entrave e diz que emitiu mais de 5.000 autorizações

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São Paulo

Obstáculos no processo de concessão do visto humanitário criado pelo governo brasileiro para refugiados afegãos estão inviabilizando a obtenção do documento por pessoas que fogem do país controlado pelo Talibã, dizem organizações de direitos humanos e de apoio a imigrantes.

Segundo um grupo de 11 entidades, entre elas a Conectas Direitos Humanos, os Médicos Sem Fronteiras e a Cáritas Arquidiocesana, o principal problema é a suspensão do agendamento de entrevistas nos consulados mais próximos ao Afeganistão, nas cidades de Islamabad e Teerã.

Como não há representação diplomática brasileira em Cabul, é preciso viajar para outros países para pedir o documento, e os vizinhos Paquistão e Irã são as opções mais viáveis. Porém, desde abril e junho, respectivamente, os postos consulares desses locais pararam de agendar entrevistas –no caso de Islamabad, já não há vagas para 2022.

Afegãs pedem proteção internacional em manifestação na capital do Paquistão, Islamabad, em maio deste ano - Farooq Naeem - 12.mai.22/AFP

As 11 organizações encaminharam um ofício ao MRE (Ministério das Relações Exteriores) nesta semana pedindo providências. A carta, dirigida ao ministro Carlos França, diz que as entidades "têm se deparado diariamente" com problemas que "acabam expondo afegãos a processos longos, impedindo-os de reconstruir sua vida nos locais que desejam e prolongando a situação de precariedade".

Segundo o texto, a suspensão das entrevistas torna a portaria de acolhida humanitária de afegãos "letra morta", já que as principais rotas de fuga para eles são justamente o Irã e o Paquistão.

A carta diz ainda que o prazo para a resposta às solicitações é moroso, com relatos de até dez meses de espera para a entrevista, e que alguns consulados exigem documentos não previstos na norma. Questionado pela reportagem, o MRE negou que haja entraves e disse que já emitiu mais de 5.000 vistos em menos de um ano.

O visto humanitário para refugiados do Afeganistão foi anunciado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em 3 de setembro de 2021, menos de um mês depois que o grupo fundamentalista Talibã tomou a capital, Cabul, e voltou ao poder após 20 anos.

A Folha vem acompanhando afegãos que estão há meses tentando deixar o país e obter o visto –muitos são parentes de refugiados que já moram no Brasil ou estão sendo ajudados por ONGs no processo de repatriação, caso de um grupo de ex-colaboradores dos Médicos sem Fronteiras.

Como as entrevistas só são agendadas para quem já está no país onde fica o consulado, muitos dos que atravessaram a fronteira foram surpreendidos pelo fechamento dos agendamentos e estão agora em um limbo, com gastos de estadia que não conseguem bancar.

Além disso, como afegãos precisam de visto para praticamente qualquer lugar do mundo, eles não têm para onde correr. Paquistão e Irã, aliás, também exigem visto dos vizinhos, e os que aguardam pelas entrevistas nesses países temem que o documento, que é temporário, expire, o que pode levar à deportação —a Turquia, por exemplo, enviou de volta mais de 18 mil afegãos desde o começo do ano.

Hospedados em um sítio numa cidade paquistanesa na fronteira, 16 membros de uma família (incluindo dez crianças e adolescentes) tentam renovar os vistos temporários pelos quais já pagaram centenas de dólares enquanto esperam os agendamentos reabrirem na embaixada brasileira em Islamabad. São o sogro, os cunhados e os sobrinhos da brasileira Magda Amiri, 47.

"Levamos muito tempo para emitir o passaporte deles e conseguir o visto paquistanês", conta a engenheira, que mora no Rio de Janeiro com o marido afegão. "Assim que eles chegaram ao Paquistão mandei os documentos para a embaixada, mas me responderam que não estão marcando entrevistas."

Magda está especialmente tensa porque um dos familiares é procurado pelo Talibã, por ter mantido negócios com militares ocidentais que apoiavam o governo deposto. "Ele pode acabar colocando todo o resto da família em risco", diz.

A brasileira Magda Amiri, o marido e quatro sobrinhos dele que já vieram do Afeganistão para o Rio de Janeiro; eles têm 16 familiares esperando no Paquistão por uma entrevista na embaixada brasileira - Lucas Seixas - 29.out.22/Folhapress

O casal conseguiu trazer outros parentes, que já tinham passaporte. "Eles chegam cheios de esperança, mas é difícil a adaptação por causa do idioma", reconhece Magda. A outra opção, porém, seria encarar a falta de perspectivas em um Afeganistão em profunda crise econômica e humanitária. "As meninas não estão estudando, a violência tem crescido internamente. Com a Guerra da Ucrânia a questão dos afegãos ficou esquecida, mas a situação lá continua complicada."

Alguns afegãos e organizações que ajudam refugiados recorreram a advogados para tentar obter respostas sobre o processo de parentes. Um desses profissionais, Vitor Bastos, acompanha ao menos 220 casos desde o ano passado, dos quais 140 ainda aguardam decisão ou agendamento de entrevista.

"As pessoas estão num país temporário, reféns de um prazo de visto sem garantia de que ele será renovado. E há locais com políticas ultrasseveras, o Irã prevê uma multa altíssima quando o visto vence." E mesmo vistos aprovados têm demorado semanas para serem entregues. "Ao falar com a embaixada, não há um espaço de esclarecimento respeitoso. O pessoal está sobrecarregado, sem paciência", conta.

"O Brasil reconheceu a situação de violação de emergência em que se encontram as pessoas afegãs, mas na prática o serviço consular não trata como emergência", afirma João Chaves, coordenador de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União em SP. "Não houve ampliação satisfatória do sistema, as entrevistas são em número insuficiente. Gerou-se um funil que impede a realização do direito."

Segundo Chaves, a DPU enviará ao Itamaraty um pedido de informações. "É preciso o investimento em caráter emergencial, seja com mutirões, simplificação do procedimento ou busca de parceiros institucionais", afirma. "O serviço consular é um serviço público, e hoje a situação é dramática."

Outro lado

Em nota, o Itamaraty declarou que a afirmação de que o sistema de concessão de vistos inviabiliza a política humanitária "não corresponde à realidade" e que já emitiu um número sem precedentes de vistos humanitários para afegãos: 5.579 vistos até esta quarta (3).

O texto diz que novos agendamentos "são disponibilizados de acordo com a capacidade de processamento das embaixadas" e dá o exemplo de Teerã, que realiza 50 entrevistas por dia. "Servidores foram designados em missões transitórias, a fim de contribuir para o processo", diz a pasta.

O ministério afirma que facilitou o processo para os afegãos, aceitando, por exemplo, passaportes expirados e dispensando-os de comprovantes de vacinação contra a Covid-19. "A referida política representa avanço substantivo na política migratória nacional, ao reforçar os vínculos de solidariedade com o povo afegão. Distingue-se da política praticada por outros países, por não limitar número de concessão de vistos a nacionais afegãos."

A nota afirma ainda que os servidores dos consulados têm trabalhado além do expediente para dar conta da demanda e que eles têm o dever "de realizar cuidadosa análise documental", para evitar a aprovação de pessoas envolvidas em crimes e coibir o tráfico de pessoas.

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