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Luís Renato Vedovato e Camila Asano

Fronteiras e olhos 'bem' fechados

Impedir acesso de imigrantes é resposta cruel e ineficaz no combate à pandemia

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Luís Renato Vedovato

Membro do Observatório das Migrações em São Paulo, é professor de direito internacional da Unicamp e da PUC de Campinas; autor do livro de ficção "O Van Gogh Esquecido" (2020)

Camila Asano

Diretora de programas da Conectas Direitos Humanos

Há muitos anos o Brasil deixou de ser um destino escolhido por migrantes. Hoje, ele é o país possível, como destaca a professora Rosana Baeninger, do Observatório das Migrações em São Paulo. Em 2018, o país abrigava uma população formada por apenas 774,2 mil imigrantes e refugiados (Agência Senado), chegando a pouco menos de 1 milhão no final de 2020, de acordo com o Relatório Anual da OBMigra. Cifras pequenas comparadas com o drama dos milhares de refugiados e migrantes vulneráveis que são obrigados a deixar seu país de origem no mundo.

Com as Leis de Refúgio (1997) e de Migração (2017), imaginava-se que os tempos de tratamento do migrante como uma questão de segurança nacional tinham sido superados. Mas a realidade tem desafiado tal afirmação.

A pandemia da Covid-19 foi impactante para as migrações internacionais. Alguns países decidiram impor tipos de restrições à mobilidade humana internacional, intuitivamente compreensível no contexto de uma doença que rapidamente se espalhava pelo mundo no início de 2020. Porém, uma análise criteriosa demonstra que restrições às migrações, em especial as proibições totais, não fazem sentido por conta do tempo de incubação do vírus e por ele já estar presente em todos os países. O combate à pandemia passa por testagem, por aumento da capacidade dos sistemas de saúde e por desenvolver vacinas e medicamentos para superá-la.

Fechar fronteiras de forma cruel é simplesmente dar uma resposta rápida, porém ineficaz, no combate à pandemia. Especialmente se o fechamento for apenas das fronteiras terrestres, tendo em vista que essa doença foi inicialmente identificada na China e se espalhou pelo mundo por rotas do transporte aéreo internacional e cepas novas apareceram em países distantes cujos viajantes só conseguem chegar por vias aéreas.

Há quem alegue que o fechamento da fronteira terrestre teria como objetivo tirar a pressão do sistema interno de saúde. É o que alega o governador de Roraima, Antonio Denarium (sem partido), que diz "temer que a entrada de venezuelanos por meio de rotas clandestinas seja um elemento decisivo para que a rede de saúde do estado entre em colapso", como publicado pelo Painel desta Folha.

Tal afirmação é inconsistente do ponto de vista jurídico e sanitário. As fronteiras são porosas, e fechá-las é apenas um alívio formal. Na prática, as pessoas continuarão a circular. Muito melhor seria se aplicássemos medidas sanitárias como testagem e quarentena. Na verdade, fica a sensação de que a luta pelo fechamento de fronteira é a luta por se conseguir uma desculpa pela incompetência de planejamento governamental somada à falta de clareza ao se levarem informações à população.

Em editorial intitulado “Tensões fronteiriças”, a Folha chama atenção para a seletividade da reabertura de fronteiras aéreas e o fechamento total das vias terrestres pelo governo Jair Bolsonaro, bem como a falta de embasamento técnico para discriminar quem venha da Venezuela.

A proibição de entrada por vias terrestres não tem fundamento no presente caso concreto. Até porque a fronteira terrestre com o Paraguai está aberta e não há restrição de mobilidade entre os estados no Brasil. Sequer temos política pública federal séria de combate à pandemia —não há defesa de ações restritivas por parte da União competente para controlar fronteiras nem plano de longo prazo para tratamento e imunização. Quais motivos levam ao fechamento da fronteira terrestre para refugiados e a manutenção dos aeroportos abertos a turistas?

A atual portaria 652 é apenas um veículo de transmissão de crueldade para pessoas que estão em total vulnerabilidade. A realidade tem mostrado que não são apenas as fronteiras que estão bem fechadas. Também estão bem fechados, lembrando o filme de Stanley Kubrick, os olhos de todos no Brasil para a triste realidade migratória.

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