Guerra impõe novos papéis às mulheres na Ucrânia e amplia debate de gênero

Mudança militar impulsiona movimento por reformas na sociedade; analistas veem risco de sobrecarga feminina

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Megan Specia Emile Ducke
Tchernihiv (Ucrânia) | The New York Times

Casas e prédios danificados alinhados ao longo da estrada para o campo de treinamento mostravam como a guerra consumiu a cidade de Tchernihiv, no norte da Ucrânia. No local, uma mulher chamada Hanna, 34, mostrava numa lousa imagens de munições e minas não detonadas.

Na aula, ela explicava aos presentes sobre os riscos de campos minados e como eles são assinalados. Uma mulher que participava do treinamento perguntou se podia levar o filho de três anos ao parque. "Não andem no mato —é melhor não caminhar ali", disse Hanna. Ela aconselhou a mulher a não sair das áreas pavimentadas e sem buracos.

Hanna, que pediu para que seu sobrenome não fosse divulgado, faz parte de um contingente crescente de mulheres treinadas a desativar minas. É um trabalho que até alguns anos integrava uma lista de centenas de atividades que as ucranianas eram proibidas de fazer. Em seis meses de guerra, elas vêm se tornando uma força onipresente, contestando estereótipos tradicionais sobre seu papel na sociedade pós-soviética.

Soldada ucraniana posa em frente a veículo militar na região do Donbass - Bulent Kilic - 26.jul.22/AFP

Cada vez mais mulheres estão ingressando nas Forças Armadas, inclusive em posições de combate, liderando esforços voluntários e de arrecadação de fundos. E, com os homens ainda compondo a maioria dos combatentes, estão assumindo papéis adicionais na vida civil.

Em Mariupol, Hanna ingressou dois anos atrás numa fundação suíça de desativação de minas. Depois da invasão russa, abandonou a cidade portuária ao sul. Agora está trabalhando em cidades como Tchernihiv —da qual tropas russas já bateram em retirada— para proteger contra minas terrestres as cidades e vilas devastadas pelo conflito.

"A visão que a sociedade tem tido das mulheres é muito paternalista", diz a socióloga Anna Kvit, especializada em estudos de gênero. "Com essa guerra, a atuação independente das mulheres não apenas cresceu como ficou mais visível."

A mudança vem ocorrendo há algum tempo, segundo ela. Desde 2014, na anexação da Crimeia, as mulheres vêm assumindo mais papéis novos, acelerando as transformações nos setores de defesa e segurança que acabaram chegando à sociedade mais ampla. "A resistência vinha, e provavelmente ainda vem, da ideia de que o Exército e a guerra não são lugares para mulheres."

Uma legislação promulgada em 2018 conferiu às mulheres o mesmo status legal que os homens nas Forças Armadas, impulsionando um movimento mais amplo por reformas trabalhistas inclusivas.

As novas leis derrubaram a proibição de mulheres exercerem qualquer uma de 450 ocupações no país, uma proibição herdada da era soviética —quando determinados trabalhos eram vistos como nocivos à saúde reprodutiva. Além da desativação de minas, a lista incluiu funções como motorista de caminhões por longas distâncias, soldadora e bombeira.

Hanna Maliar, vice-ministra da Defesa, diz que hoje há mais de 50 mil ucranianas nas Forças Armadas e que a participação delas cresceu muito desde que a guerra começou. Com homens de 18 a 60 anos proibidos de deixar o país para que possam combater a Rússia, mulheres vêm se voluntariando para conduzir veículos vindos de outros países.

"Quando a guerra começou, fiquei pensando como poderia ajudar", diz Ievguêniia Ustinova, 39, que integra um desses grupos. Numa parada em Lviv, ela descreveu uma viagem de ida e volta de dois dias que fez entre Kiev e a Polônia, para buscar um caminhão.

As motoristas têm sido muito bem recebidas, segundo Maria Stetsiuk, 35. Mas de vez em quando surgem céticos, como o policial que a abordou quando ela estava indo a Dnipro perguntando por que ela estava dirigindo e não tinha marido. "Nunca imaginei que eu estaria fazendo algo assim. Mas hoje em dia todos estão fazendo o que podem, homens e mulheres."

A guerra que desafiou percepções sobre gênero e ampliou oportunidades para mulheres também vem tendo um efeito brutal e desproporcional sobre a vida delas. Embora elas tendam a não morrer em combate, estão entre as pessoas mais afetadas pelo deslocamento: uma análise da ONU Mulheres e da CARE International concluiu que o conflito as sobrecarregou muito, por terem de cuidar dos filhos sozinhas, e agravou desigualdades de gênero.

Iuliia Serdiuk, 31, ficou gravemente ferida em bombardeios que semanas atrás atingiram Orikhiv, na região de Zaporíjia, com forças ucranianas lutando para repelir tropas russas. No dia 8 de maio seu filho pediu que ela segurasse sua mão enquanto ele descia uma via de skate. "De repente houve uma explosão e começamos a correr", conta.

Ela protegeu o garoto com o próprio corpo, e estilhaços de projéteis a feriram nas costelas e no fígado e cortaram sua coluna vertebral ao meio. Iuliia não consegue mais andar, foi retirada de trem para um hospital em Lviv, onde está passando por reabilitação.

Ela espera ser transferida para fora do país para receber assistência mais avançada, mas um dia quer voltar para casa, apesar de Orikhiv ter sido destroçada —a escola de seu filho desapareceu, o centro da cidade foi demolido.

Tradução de Clara Allain

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