Descrição de chapéu BBC News Brasil jornalismo 11 de setembro

Por que os EUA têm US$ 7 bi do Afeganistão e não querem devolver o dinheiro

Congelamento de ativos do banco central do país foi uma das medidas de governo americano contra Talibã

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BBC News Brasil

​Há um ano, os Estados Unidos retiraram suas tropas do Afeganistão em uma saída caótica que deixou dezenas de mortos e milhares de exilados.

Depois que o Talibã retomou o poder em agosto de 2021, o governo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, decidiu congelar cerca de US$ 7 bilhões (mais de R$ 35 bi) em ativos que o banco central afegão tinha no Federal Reserve de Nova York (outros US$ 2 bilhões estão em outros países).

Isso representa mais de 40% das reservas em moeda forte do Afeganistão e inclui US$ 500 milhões em ativos de bancos privados que são obrigados por lei a serem depositados no banco central afegão.

Diversos homens afegãos estendem os braços para cima e erguem bandeira
Homens no Afeganistão comemoram o primeiro aniversário da tomada do poder pelo Talebã - Getty Images/BBC

O argumento da Casa Branca é que a liberação dos fundos possa levar o Talibã a desviar recursos ou não usá-los para melhorar a situação dos afegãos.

O confisco de reservas já foi praticado antes contra outros governos, instituições e indivíduos que Washington considera terem violado leis, praticado corrupção ou participado de ataques contra os direitos humanos.

Mas a crise que o Afeganistão experimentou no ano passado, uma das piores de sua história, levou vários especialistas e organizações a pedir a Biden que permitisse que o dinheiro do Afeganistão voltasse ao país.

Na semana passada, mais de 70 economistas e especialistas, incluindo o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz (2001), pediram a Washington e outros países ocidentais que liberassem os ativos para permitir que a economia afegã voltasse a funcionar.

"Estamos profundamente preocupados com as catástrofes econômicas e humanitárias que estão se agravando no Afeganistão e, em particular, com o papel da política dos EUA em promovê-las", disse a carta, também assinada, entre outros, pelo ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis.

"Sem acesso às suas reservas estrangeiras, o banco central do Afeganistão não pode desempenhar suas funções normais e essenciais", acrescentaram.

Os especialistas consideraram que a posição dos EUA só agrava a situação de crise que a nação islâmica vive desde o retorno do Talibã há um ano.

Mulher carrega criança com escoriações no rosto
Milhões de crianças afegãs sofrem de desnutrição - Getty Images/BBC

"O povo do Afeganistão teve que sofrer duplamente por um governo que não elegeu. Para mitigar a crise humanitária e colocar a economia afegã no caminho da recuperação, pedimos que você permita que o DAB [banco central afegão] recupere suas reservas internacionais", disseram.

A economia do Afeganistão vive um dos piores momentos de sua história desde a volta ao poder do Talibã, uma situação que não está diretamente ligada à retenção dos fundos nos EUA.

O corte repentino da ajuda internacional (a ajuda externa direta financiava 70% do orçamento do governo afegão antes da chegada dos talibãs) e a inflação causada pela guerra na Ucrânia aprofundaram a situação de extrema pobreza no país, onde milhões de pessoas estão em risco de fome, segundo estimativas.

Nesse contexto, o país tem sido prejudicado pela incapacidade de funcionamento do seu banco central por não ter acesso às suas reservas.

homem segura placa, cercado por outros afegãos
O Afeganistão está passando por uma profunda crise econômica - Getty Images/BBC

Isso resultou em uma forte depreciação da moeda afegã (afegane), levando ao aumento dos preços das importações e ao colapso do sistema bancário, com milhares de pessoas impossibilitadas de acessar suas economias ou receber salários.

Longa cruzada

Há meses, Washington e o Talibã mantêm conversas para discutir a liberação das reservas, mas não encontraram um meio-termo.

O novo governo do Afeganistão não é reconhecido pela maioria da comunidade internacional, e grupos de direitos humanos acusaram o Talibã de abusos, incluindo execuções extrajudiciais e cerceamento das liberdades de mulheres e meninas.

O Talibã, por sua vez, prometeu investigar os supostos assassinatos e diz estar trabalhando para garantir os direitos dos afegãos à educação e à liberdade de expressão "dentro dos parâmetros da lei islâmica".

Entre as soluções discutidas para acabar com o embargo das reservas está a criação de um mecanismo que incluiria um fundo fiduciário, cujos desembolsos seriam decididos com a ajuda de um conselho internacional.

Mas, embora o Talibã não rejeite o conceito de fundo fiduciário, se opõe à proposta de que seja controlado por terceiros.

E, por outro lado, os Estados Unidos se opuseram à nomeação pelo Talibã de uma pessoa alvo de sanções de Washington como vice-governador do banco central do Afeganistão, o que também tem dificultado o avanço das negociações.

11 de Setembro

E o problema vai além.

Esses ativos tornaram-se objeto de litígio, pois algumas vítimas americanas dos ataques de 11 de Setembro pediram que fossem usados ​​para pagar indenização por sentenças pendentes contra o Talibã.

Desde que os EUA iniciaram sua cruzada contra o "terrorismo internacional", permitiram que fundos de organizações, países ou indivíduos considerados "terroristas" fossem usados ​​para indenizar vítimas ou suas famílias.

homens afegãos levantam as mãos, em ambiente aberto, sob sol apino
No Afeganistão, o Talebã retomou o poder há um ano - AFP

Há mais de uma década, um grupo de famílias do 11 de Setembro obteve uma sentença à revelia contra o Talibã por sua suposta colaboração com a Al Qaeda, o grupo extremista que realizou os ataques.

Depois que o Talibã retomou o poder no ano passado, um tribunal distrital federal dos EUA decidiu que, como os islâmicos agora controlavam o Afeganistão, os demandantes poderiam ir atrás dos ativos congelados.

A decisão foi altamente controversa porque os Estados Unidos não reconhecem o Talibã como o governante legítimo do Afeganistão —e o Afeganistão, como país, não foi nomeado como réu soberano no processo inicial.

Em fevereiro passado, o governo Biden apresentou um plano que transferiria cerca de metade dos ativos (cerca de US$ 3,5 bilhões) para terceiros, mas deixaria o restante nos EUA até que o litígio em andamento fosse concluído.

O processo e a decisão de Biden não foram isentos de controvérsias e questionamentos.

"O governo dos Estados Unidos está saqueando ativos que legalmente pertencem a outro governo para recompensar seus próprios cidadãos", escreveu Daniel W. Drezner, professor de política internacional da Faculdade de Direito e Diplomacia da Universidade de Tufts, em uma coluna no jornal The Washington Post.

"Se outro país fizesse isso, seria visto como roubo total. E isso torna muito mais fácil para outras grandes potências agirem de maneira imperial semelhante", acrescentou.

"A implicação de longo prazo é dar a outros países mais uma razão para se ressentir e temer que os EUA usem o dólar como arma. Porque não importa qual justificativa legal seja fornecida, o governo federal está roubando o dinheiro do Afeganistão", concluiu.

Entre os que se opõem à devolução do dinheiro do banco central afegão estão os que lembram que grande parte dele vem da ajuda internacional dos EUA e de outros países ocidentais.

Este texto foi publicado originalmente aqui.

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