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Rússia terrorismo

Fiasco dos EUA no Afeganistão expõe dilema sobre terrorismo

Deixando afegãos à própria sorte, restou a Biden jogar bombas em ameaças potenciais

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São Paulo

Termo introduzido no léxico ocidental em 1794 para denunciar os excessos da Revolução Francesa, o terrorismo é companheiro de longa data da política mundial, com práticas vistas desde a Antiguidade Clássica, passando por revoltas judias contra romanos que trouxeram contexto ao cristianismo.

Sua perenidade e capacidade adaptativa não são segredo, e isso estava na cabeça de Joe Biden quando o presidente americano largou o Afeganistão à própria sorte no ano passado. Cumprindo um acordo costurado por Donald Trump, o democrata simplesmente empacotou 20 anos de ocupação e presença militar e fugiu.

Soldado talibã guarda prédio atingido por explosão de ataque terrorista em junho deste ano na capital, Cabul
Soldado talibã guarda prédio atingido por explosão em junho deste ano na capital, Cabul - Ali Khara - 18.jun.2022/Reuters

Foi uma derrota vexatória, com as cenas de civis afegãos caindo de grandes cargueiros C-17 em decolagem. Cerca de 120 mil ocidentais foram evacuados, mas pouquíssimos de seus auxiliares locais conseguiram sair.

Falando sobre eles, então expostos à vingança do Talibã, o grupo fundamentalista que retomou o controle do país em uma campanha fulminante de duas semanas que culminou com a queda de Cabul há um ano, o chefe militar americano então responsável pela região diz ser "assombrado até hoje" pelo fracasso.

"Não conseguimos retirar todo mundo que gostaríamos, em particular vários afegãos que nos ajudaram nos anos em que fomos parceiros, muitas vezes em combate", afirmou o agora aposentado general Frank McKenzie, em uma reveladora entrevista à rádio pública americana NPR no começo deste mês.

Isso dito, Biden seguiu com seu plano. Os EUA não mais tentariam impor sua forma de governo, a democracia, àquele canto perdido do Hindu Kush. Ameaças terroristas seriam tratadas como tal, com ação militar pontual na forma de bombardeios com drones ou aviões.

Sob pressão pela crise da Guerra da Ucrânia e da reação chinesa à desastrosa visita da presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, a Taiwan, o democrata tentou apresentar uma prova de que sua decisão no Afeganistão foi correta ao anunciar a morte do chefe da Al Qaeda, Ayam al-Zawahiri, o antigo braço-direito de Osama bin Laden.

A morte foi embaraçosa para o Talibã. Al-Zawahiri morava em um bairro abastado, para padrões locais, de Cabul. Estivesse sob proteção ou sob prisão domiciliar, o fato é que sua presença provava o que McKenzie disse na entrevista: os talibãs romperam o acordo feito com os americanos, que previa expulsar quaisquer elementos terroristas de seus domínios.

Desde os caóticos dias da retirada americana, quando a filial afegã do Estado Islâmico deu as caras com um terrível atentado, ficou evidente que o Talibã ou enfrentaria rivais ou teria de compor com eles. Mas a erradicação de grupos que têm na obliteração de valores ocidentais sua base era apenas uma ilusão —como, num contexto mais amplo, o ataque ao escritor Salman Rushdie exemplifica.

Uma prova disso está no vizinho Paquistão, que em agosto de 2021 viu seu então premiê, Imran Khan, celebrar o "rompimento das correntes" do povo afegão. Um ano depois, além de o vizinho ter caído numa versão modernizada do regime medieval que marcou sua primeira passagem pelo poder, Islamabad se vê acossada.

O TTP (Tehreek-e-Taliban, ou Talibã paquistanês), que imprimiu um reino de terror no final dos anos 2000, sendo o principal suspeito da morte da ex-primeira-ministra Benazir Bhutto em 2007, havia sido desmantelado com ajuda do governo pró-EUA em Cabul, que prendeu vários de seus líderes que estavam no Afeganistão.

Os grupos, diga-se, nunca foram aliados próximos e têm origens distintas. Com a volta dos fundamentalistas ao poder, cerca de 4.000 jihadistas foram soltos de prisões afegãs e voltaram a vicejar nas áreas tribais, segundo relatório de julho do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Não por acaso, subiu em 42% o número de atentados no Paquistão em 2021, em relação a 2020, e a tendência deste ano era de alta tão acentuada que Islamabad propôs uma trégua ao TTP. O cessar-fogo está em vigor desde junho, mas mostra o espraiamento da instabilidade pós-retirada.

O Paquistão foi o pai da primeira encarnação do Talibã, fomentado nas áreas tribais de fronteira entre os dois países. De 1996 a 2001, comandou uma aberração de governo, mas garantiu aos fiadores aliança e profundidade estratégica em caso de guerra com a rival Índia.

Os talibãs abrigaram a Al Qaeda de Osama, vieram os atentados do 11 de Setembro e a invasão americana. Naquele ponto, o abandono americano aos mujahedin, "guerreiros santos" que lutaram contra a ocupação soviética do Afeganistão (1979-89) foi apontado como um dos criadouros do radicalismo jihadista.

Terá Biden cometido o mesmo erro? Cedo para dizer, mas a estratégia ora empregada garante apenas que buracos no dique serão tapados —com mísseis. Mas o reservatório pode apenas aumentar de volume, e aí o risco de uma nova onda de ações em um momento em que o Ocidente se vê em crises múltiplas se eleva.

Isso seria desastroso para o americano, sem falar na tragédia que já se abate sobre os afegãos comuns, com a volta de restrições à inserção das mulheres na sociedade e a brutalidade no cotidiano. Resume o general McKenzie: "Eu me arrependo do que ocorreu no verão passado. E temo que as coisas ficarão muito, muito piores antes de que melhorem um pouco".

Os dois momentos do Talibã no poder

  1. 1996

    26.set | Rebeldes do Talibã tomam o controle de Cabul, matando o então presidente

  2. 2001

    8.out | Depois do 11 de Setembro, Talibã nega a extradição de membros da Al-Qaeda; George W. Bush declara guerra ao terror e envia tropas ao Afeganistão 7.dez | EUA apontam Hamid Karzai como presidente

  3. 2006

    Talibã ganha força e retoma territórios no sul

  4. 2014

    Afeganistão assume operações militares; Otan e EUA passam a ter papel de treinamento e apoio 27.mai | Barack Obama anuncia plano para retirada gradual das tropas

  5. 2015

    Talibã conquista mais territórios, e Estado Islâmico passa a ganhar força

  6. 2017

    Donald Trump bombardeia instalações do EI e anuncia aumento da presença militar

  7. 2020

    29.fev | EUA e Talibã encaminham retirada das tropas, no Acordo de Doha

  8. 2021

    14.abr | Joe Biden determina saída das tropas para 11.set 14.ago | Talibã retoma províncias, e EUA iniciam retirada de funcionários 16.ago | Talibã conquista Cabul e chega ao poder 31.ago | Último soldado dos EUA deixa o país

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