Descrição de chapéu 11 de setembro refugiados

Decidi me matar se o Talibã me sequestrasse, diz fotógrafa afegã refugiada em SP

Mulheres que deixaram o Afeganistão devido à volta dos extremistas um ano atrás contam sua história à Folha

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A refugiada afegã Zahra Karimi, 23, em sua casa em São Paulo Bruno Santos/Folhapress

São Paulo

Quando o Talibã chegou à sua cidade, Zahra Karimi estava trabalhando no hospital onde era assistente de um cirurgião e foi aconselhada, como todos os colegas, a voltar correndo para casa. Ela correu, achando que teria que se esconder por um dia ou dois, até que a situação voltasse à normalidade.

Mas isso nunca aconteceu.

Hoje, a afegã de 23 anos vive em São Paulo, como refugiada de um regime que nega quase tudo às mulheres. Moradora de Herat, um dos primeiros grandes centros urbanos tomados pelos talibãs em sua ofensiva de retorno ao poder no Afeganistão, Zahra custou a acreditar que não só sua cidade, mas todo o país cairia novamente sob o jugo do grupo extremista —numa velocidade que surpreendeu inclusive as potências ocidentais que ocuparam a região por 20 anos.

"Foi um choque. Era inacreditável. Inacreditável", repete a jovem, sentada na entrada da residência coletiva no bairro da Bela Vista onde mora com o tio e outros cinco afegãos, homens e mulheres, quase todos fotógrafos.

Zahra pertence a uma geração de afegãs que viveu a maior parte da vida com acesso a direitos básicos —ir à escola, caminhar pelas ruas e trabalhar— e que viu tudo isso desaparecer de um dia para o outro, com o estrito código de conduta talibã que afeta especialmente as mulheres.

Algumas delas se refugiaram no Brasil, com um visto humanitário concedido pelo país; mais de 5.651 documentos foram emitidos desde setembro de 2021, segundo o Itamaraty. A história de Zahra é a primeira de uma série de três afegãs que contaram suas histórias à Folha um ano depois de o Talibã ter voltado a governar o país.

Quando os talibãs voltaram a governar, todas as famílias com filhas jovens passaram a ter muito medo de que eles as sequestrassem e obrigassem a se casar com eles. Então minhas amigas e eu tomamos uma decisão: que, se eles quisessem nos levar e a gente não conseguisse escapar, iríamos nos matar. Estávamos realmente seguras. Preferíamos isso a ter que viver uma vida horrível com eles.

Sou da etnia hazara, que sempre teve problemas com o Talibã. A maioria dos hazaras de Herat se mudou para Cabul achando que eles não conseguiriam entrar lá, que a capital iria resistir. Nessas situações qualquer decisão pode ser perigosa. Nós optamos por sair de casa para um lugar mais seguro na própria cidade. Nem sei dizer por quanto tempo ficamos assim. Não tinha noção da passagem dos dias e noites.

Todo mundo queimou identidades militares, documentos de trabalho para grupos estrangeiros e fotografias. Eu preferi esconder nossos documentos debaixo da terra.

Nasci no Irã, meus avós afegãos foram forçados a migrar para lá devido à guerra contra os soviéticos (1979-1989). Eu tinha três anos quando o Talibã deixou o governo da outra vez (em 2001). Meus pais ficaram radiantes e decidiram voltar. Mas agora a situação está assim e eu tive que sair. De novo.

No Afeganistão você tem que ter muitas habilidades, porque se não encontra trabalho em uma área pode tentar em outra. Eu trabalhava como parteira e assistente de cirurgião plástico. Também fotografava desde os 18 anos e participava de um projeto do ITC [International Trade Center, agência ligada à Organização Mundial do Comércio e à ONU]. O Talibã não gosta de jornalistas e fotógrafos, menos ainda de mulheres fotógrafas. Não dava mais para seguir nosso caminho lá, corríamos risco.

Naquele momento todos os países pararam de dar vistos para os afegãos, foi muito frustrante, mas mesmo assim nos preparamos para sair, sem saber para onde iríamos. Só queríamos escapar. Abraçar minha mãe pela última vez foi muito, muito difícil.

Nosso grupo passou três dias e duas noites na fila da fronteira com o Paquistão, em pé, sem comer nem beber nada. Fazia muito frio. Os pashtuns [mesma etnia da maioria dos talibãs] atravessavam facilmente, mas nós, hazaras, éramos impedidos.

Foi a primeira vez que eu vi um talibã bem de perto. Eles batiam muito nos homens hazaras: crianças, jovens, velhos, não importava. Não consigo entender: como eles podem fazer isso sem nenhuma razão? Batiam muito no meu tio, eu não aguentava ver aquilo. Quando finalmente conseguimos atravessar, todo mundo se abraçou. Estávamos vivos. Foi uma sensação muito boa.

Tentamos obter um visto para a França, os EUA e a Alemanha, mas não conseguimos. Finalmente a gerente do nosso projeto no ITC, que é brasileira, conseguiu um visto para o Brasil e viemos para cá.

Achei tudo aqui muito diferente: a cultura, a língua, as pessoas, as roupas, tudo. A comida foi o primeiro problema. Passei os primeiros três dias sem comer nada. Hoje eu gosto de arroz com feijão, de pão de queijo, brigadeiro. Estou há seis meses fazendo aulas de português, ainda no nível básico. Gosto de palavras como "nossa", "muito bonito", "muito delicioso". Pastel eu acho "muito delicioso".

Toda pessoa da minha geração quer ser bem-sucedida, aprender, melhorar seu país, ter metas para o futuro. O Talibã acabou com tudo isso. Todo mundo lá está deprimido, as pessoas perderam o ânimo de viver, se aperfeiçoar. Minha irmã de 16 anos, por exemplo, não pode mais estudar. O Talibã tinha dito que iria permitir que as meninas fossem à escola, ela se preparou para ir, mas no mesmo dia voltaram atrás.

Começar do zero é muito difícil para mim. Sinto falta da minha família todos os dias. Quando vejo uma família na rua, eu penso: eles podem ficar juntos, em paz, no país deles. É difícil aceitar que meu pai e minha mãe não estão comigo.

Mas os brasileiros são muito legais. Eles geralmente falam que eu sou a primeira pessoa do Afeganistão que conhecem. A primeira coisa que eu quero é aprender português. Depois, continuar atuando com fotografia, me aperfeiçoar, porque tenho muito a aprender. Estou tentando fazer parte desse povo.

A crise humanitária no Afeganistão

Dados da ONU e do Afghanistan Protection Cluster

  • 24 milhões

    de afegãos precisam de ajuda humanitária urgente

  • 700 mil

    afegãos tiveram que se deslocar internamente devido a conflitos em 2021

  • 98 países

    abrigam refugiados afegãos atualmente

  • 65%

    foi o aumento no número de solicitações de asilo por afegãos em 2021

  • 55%

    da população afegã não tem comida suficiente

  • 90%

    das mulheres afegãs foram vítimas de algum tipo de violência de gênero

  • 8,3%

    das afegãs com idade entre 20 e 24 anos se casaram antes dos 18

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