Descrição de chapéu 11 de setembro refugiados

Talibã matou meu pai porque eu era militar, diz afegã refugiada em SP

Mulheres que deixaram o Afeganistão devido à volta dos extremistas um ano atrás contam sua história à Folha

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A refugiada afegã Setara Joya, 24, no restaurante da família em São Paulo Bruno Santos/Folhapress

São Paulo

Mulher, militar, da etnia hazara: a afegã Setara Joya, 25, reúne vários atributos que a tornavam um alvo preferencial do Talibã.

Por causa disso, ela perdeu o pai, assassinado ao não revelar a localização da filha a combatentes do grupo fundamentalista que o abordaram quando ele viajava da capital, Cabul, para Jaghori —um dos redutos do povo hazara, historicamente perseguido pelos talibãs.

Também por causa disso, Setara acabou deixando o país para morar em São Paulo com os tios e três primos. Antes de sair, queimou seu uniforme, as botas, fotos e documentos e apagou todas as redes sociais.

Hoje, a ex-militar ajuda no restaurante da família, Koh i Baba, provavelmente o único do Brasil especializado em comida afegã. O pequeno imóvel no bairro da Liberdade, com algumas mesas no térreo, também serve de moradia para os seis adultos da família no segundo andar.

O espaço é apertado e a vida é de luta, mas ela não reclama. O tio, Sorab Kokhan, 65, que mora em São Paulo desde 2011 e serviu de intérprete na entrevista, diz que o Brasil é "um paraíso" comparado com o que se tornou o Afeganistão para os hazaras.

Setara define a fase atual com a frase que usou para descrever o alívio ao descer do avião, no aeroporto de Guarulhos: "Toda a escuridão ficou para trás".

Setara é a segunda de uma série de três entrevistadas que contaram suas histórias à Folha um ano depois de o Talibã ter voltado a governar o país. São afegãs que viveram a maior parte da vida com acesso a alguns direitos básicos —ir à escola, caminhar pelas ruas e trabalhar— e que viram tudo isso desaparecer de um dia para o outro. A primeira personagem da série foi a fotógrafa Zahra Karimi, que também se refugiou em São Paulo.

Nós não esperávamos que os militares afegãos fossem derrotados tão rapidamente. Fiquei tão triste, tão desapontada. Eu era respeitada, servia no Exército. Para onde foi tudo isso? O meu país foi destruído.

Os Talibãs não gostam de mulheres militares. Meu pai estava voltando de Cabul para nossa região, Jaghori, e foi parado por eles: "Onde está sua filha? Por que você deixou ela entrar no serviço militar? É um sacrilégio". E então eles o mataram.

Eu tive que me esconder, tinha muito medo de que me matassem também. Passei três meses dentro de casa com outras mulheres. Só saía para fazer compras, de burca. Queimei meus uniformes militares, meus documentos, minhas botas. Eu sabia que eles poderiam vir e revistar tudo a qualquer momento.

Então meu tio me ligou e disse que deveríamos fugir para o Paquistão. Saí com meus primos em uma viagem de três dias, usando um lenço bem fechado. Atravessamos clandestinamente a fronteira, mas eu e minha prima fomos pegas e devolvidas para o outro lado. Passamos escondidas outra vez, à noite, por baixo de uma cerca, e conseguimos. Meu primo foi pego também. Passou dez dias preso.

A parte da fronteira foi o momento mais difícil, porque sabíamos que estávamos entre a vida e a morte e não tínhamos certeza de nada: se passaríamos para o outro lado, se chegaríamos à embaixada brasileira, se conseguiríamos o visto. Foi muito angustiante.

E também não nos sentíamos seguros no Paquistão, porque quando os policiais encontram afegãos que estão lá ilegalmente, devolvem para o Afeganistão. E podem bater em você, extorquir, matar. Você fica sempre tenso.

Os paquistaneses nos incomodaram bastante para sair de Islamabad. Eles sempre buscam uma desculpa de que você não tem isso, não tem aquilo [documentos]. A embaixada brasileira interferiu e conseguimos embarcar.

Quando entrei no avião, enfim pude respirar tranquila, porque sabia que todo aquele sofrimento havia acabado. Estávamos indo para um lugar bom. A escuridão ficou para trás.

Agora estou livre, trabalhando com meu tio, aprendendo. Aqui as pessoas têm respeito pelas mulheres. Lá não, as mulheres estão sempre por baixo, você não pode fazer nada porque não a deixam sair, trabalhar. Tenho saudade da minha mãe, mas não de todo o sofrimento do Afeganistão. Quando lembro de tudo o que passei, fico triste, mas ao mesmo tempo sei que tenho que esquecer o passado porque a vida segue.

A crise humanitária no Afeganistão

Dados da ONU e do Afghanistan Protection Cluster

  • 24 milhões

    de afegãos precisam de ajuda humanitária urgente

  • 700 mil

    afegãos tiveram que se deslocar internamente devido a conflitos em 2021

  • 98 países

    abrigam refugiados afegãos atualmente

  • 65%

    foi o aumento no número de solicitações de asilo por afegãos em 2021

  • 55%

    da população afegã não tem comida suficiente

  • 90%

    das mulheres afegãs foram vítimas de algum tipo de violência de gênero

  • 8,3%

    das afegãs com idade entre 20 e 24 anos se casaram antes dos 18

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