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Guerra da Ucrânia Rússia

Putin tenta mudar Guerra da Ucrânia, mas a traz para a Rússia

Propagandista do governo critica mobilização, e cidades têm novos protestos contra medida

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São Paulo

A guinada que se insinua radical de Vladimir Putin na condução da Guerra da Ucrânia pode melhorar a sorte da Rússia no conflito que iniciou há sete meses, mas tem o condão de trazê-lo para dentro de casa.

A mobilização de ao menos 300 mil reservistas pode, no médio prazo, resolver o nó da ofensiva russa, a falta de pessoal. As imagens de colunas simples de blindados servindo de alvo a foguetes portáteis americanos perto de Kiev no começo da guerra, sem apoio de infantaria, vão ilustrar manuais militares como contraexemplo tático.

Policiais prendem manifestante contrário à mobilização em São Petersburgo
Policiais prendem manifestante contrário à mobilização em São Petersburgo - AFP

O governo de Volodimir Zelenski parece ter entendido o problema e, ao atrair reforços russos para uma anunciada ofensiva em Kherson, no sul, deixou as supostamente fortes defesas dos invasores em Kharkiv expostas como uma casca de ovo. Kiev as quebrou e retomou cerca de 5% de território perdido.

Foi a gota d'água para o chamado partido militar da elite russa. Ao longo de um contrato que já dura duas décadas, Putin governa a exemplo dos czares, reinando sobre facções rivais e servindo de feixe único de poder. Em troca, todos recebem sua parte do butim, como controle sobre setores da economia.

O grupo mais poderoso é aquele de onde saiu Putin, os "siloviki" (durões, em russo), egressos do aparato de segurança do Estado. Gente como Nikolai Patruchev, o poderoso secretário do Conselho de Segurança, ou o ex-guarda-costas do presidente Viktor Zolotov, chefe da Guarda Nacional.

Por meio de blogueiros militares alimentados com informações de bastidor, há meses a linha-dura demandava uma ação mais objetiva. Por toda destruição que causou, a guerra de Putin é um esforço com meia carga, justamente porque o presidente queria deixar o conflito fora do cotidiano dos russos.

Deu certo: além de 76% apoiarem os militares, 83% aprovam o presidente, segundo o independente e insuspeito Centro Levada. E a popularidade é a chave da manutenção do status de Putin em seu arranjo.

Pavel, um morador de Rostov-do-Don, capital regional russa mais importante próxima da Ucrânia, resume isso. "Continuamos andando nos calçadões do centro e indo aos restaurantes ao lado do rio. Nem parece que as pessoas estão se matando aqui do lado", disse ele, que perdeu contato com um primo que morava em Mariupol, cidade tomada por Moscou cujo cerco foi o mais duro da guerra, a 180 km de Rostov.

Enquanto a anexação por meio de referendos farsescos de áreas que o Kremlin não controla totalmente acontece até a terça-feira (27) e parece um fato político consumado, a mobilização pelo país, com cenas sugerindo coerção em regiões mais remotas, mexeu com isso.

Nem tanto pela saída de russos do país, explorada "ad nauseum" pelo noticiário ocidental mas que parece longe de um êxodo frenético, mas pela reação visível na classe média e entre a elite.

"Havia sido anunciado que os soldados podiam ser recrutados até a idade de 35 anos. Papéis estão chegando para pessoas de 40 anos. Isso está enfurecendo as pessoas, como se fosse de propósito, por despeito. Como se fossem enviados por Kiev", afirmou neste sábado (24) no Twitter Margarita Simonian.

Ela é a editora-chefe da RT, rede estatal russa de televisão, e considerada uma das mais importantes propagandistas do regime putinista. Entre outras coisas, ela já sugeriu que a Terceira Guerra Mundial entre Rússia e Ocidente já começou, o que casa com o discurso crescentemente belicista de Putin e sua ameaça de empregar armas nucleares caso suas novas conquistas sejam atacadas.

É o tipo de dissenso que diz mais do que uma fila de carros na fronteira da Geórgia, mas também não indica que o presidente está prestes a perder a cadeira. A estruturação do poder sob Putin é bem sólida, e a elite não teve alternativa senão juntar-se ainda mais a ele sob a pressão das sanções ocidentais.

Entre a classe média, que já não tinha oposição viável e perdeu de vez qualquer voz de contraditório com o endurecimento do regime nos dois últimos anos, a sensação em conversas é de desalento. "Quem puder sair vai sair, acho, mas é muito difícil. Nossa vida é aqui", diz Serguei S., analista financeiro em Moscou.

Com efeito, novos protestos contra a mobilização foram registrados em cidades russas neste sábado. Segundo OVD-Info, ONG que monitora abusos, mais de 700 pessoas foram detidas.

Por outro lado, a admissão de erros e a concessão à visão de aliados como o líder tchetcheno Ramzan Kadirov mostra que Putin sentiu o golpe. A caça aos bodes expiatórios parece a pleno vapor: neste sábado foi anunciada de forma inusualmente franca a saída do responsável pela logística militar, Dmitri Bulgakov.

O que se desenha com a anexação de 15% do território ucraniano, do qual já tem 7% desde que absorveu a Crimeia, é um plano que pode dar a Putin um caminho de saída para a guerra, ou para seu congelamento.

Zelenski, por todo seu voluntarismo, sabe que o russo aposta no prolongamento do conflito, contando com o declínio do apoio da Europa com a chegada de um inverno sem gás russo para aquecer as casas.

Uma alternativa pode ser os EUA e seus aliados na Otan pagarem para ver o que Putin disse em rede nacional de TV não ser um blefe, as ameaças nucleares, levando a crise para um patamar insondável.

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