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Justiça do Reino Unido intensifica tática que pune negros de forma desproporcional

Tendência ignora decisão história da Suprema Corte e relatórios que apontam para racismo estrutural no sistema criminal

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Jane Bradley
Manchester | The New York Times

A mais alta corte do Reino Unido anunciou em 2016 algo que parecia uma vitória importante para as liberdades civis, decretando que havia décadas promotores vinham se excedendo no uso de uma tática que enviou centenas de pessoas à prisão perpétua por homicídios cometidos por outras.

Isso após advogados, acadêmicos e ativistas travarem uma batalha por uma década argumentando que esses casos eram injustos e tingidos por viés racial. Eles festejaram a decisão da Suprema Corte e previram que o número de processos cairia.

Passados seis anos, isso não aconteceu.

Ann Marie Lawrence holds a phone showing her son Giovanni Lawrence, who was convicted of murder in a so-called joint enterprise case, in Manchester, England on July 14, 2022. The zealous use of joint-enterprise case prosecutions is one example of how British political leaders have pursued criminal justice policies that disproportionately punish Black people. (Mary Turner/The New York Times)
Ann Marie Lawrence segura telefone com foto do filho, Giovanni Lawrence, condenado por assassinato em um dos casos envolvendo a chamada iniciativa conjunta, em Manchester, no Reino Unido - Mary Turner - 14.jul.22/The New York Times

Em vez de se deixarem limitar pela decisão, promotores discretamente traçaram estratégias para continuar a mover ações e conseguir condenações. Números aos quais o New York Times teve acesso por meio de solicitações de dados públicos revelam que o Crown Prosecution Service (CPS), espécie de Ministério Público britânico, na realidade intensificou a frequência desses processos desde então.

Esse uso excessivo é um exemplo de como líderes britânicos dos principais partidos têm defendido políticas de justiça criminal que punem pessoas negras de maneira desproporcional.

Réus negros têm três vezes mais risco do que brancos de serem processados por homicídio em grupos de quatro ou mais pessoas —uma medida comumente aceita para classificar casos como sendo de iniciativa conjunta—, segundo os novos dados.

A iniciativa conjunta, por si só, não constitui delito. É um princípio legal que autoriza promotores a acusar várias pessoas de um único crime. O princípio ganhou notoriedade com uma sequência de processos altamente noticiados, mais de dez anos atrás.

Em um deles, um adolescente foi encarcerado e deportado por um homicídio que ele nem sequer testemunhou —muito menos cometeu. Em outro, um jovem de 16 anos parcialmente cego, que disse que nem conseguira ver seus amigos atacando alguém, recebeu pena de prisão vitalícia por homicídio.

Desde a decisão da Suprema Corte, o CPS vem procurando evitar provocar esse tipo de polêmica. Ele deixou de usar o termo "iniciativa conjunta", mas os processos continuam. Um ano após a decisão, 11 jovens de Manchester foram mandados para a prisão por um ataque a faca –apesar de o juiz admitir que não sabia se todos haviam participado do ataque.

Um jovem autista recebeu pena de prisão perpétua por outro ataque a faca cometido por um terceiro enquanto ele, segundo afirmou, estava sentado num carro assistindo a um vídeo musical.

Enquanto isso, a enxurrada de apelações bem-sucedidas nunca se concretizou. Promotores se opunham, e os juízes, que haviam definido critérios muito rígidos para recursos, rejeitaram quase todos. Apenas uma pessoa foi libertada desde a decisão da Suprema Corte.

O fato de a figura da iniciativa conjunta continuar a ser usada é um exemplo de uma política britânica de intransigência com o crime que vem ficando mais extrema. Somados a mais de cem entrevistas com pessoas que são ou já foram autoridades policiais ou judiciais, figuras do governo, advogados, juízes, acadêmicos, familiares e ativistas, os dados revelam que o discurso e as táticas do governo endureceram.

Relatórios oficiais têm apontado para racismo sistêmico no sistema de justiça criminal, mas têm sido em grande medida ignorados. No ano passado, um comitê apoiado pelo governo provocou controvérsia quando disse que não encontrou evidências de racismo institucional.

Os processos por iniciativa conjunta podem dar uma vantagem aos promotores, permitindo que coloquem vários réus no mesmo saco e, em muitos casos, os caracterizem como membros de gangues. E é muito mais comum que pessoas negras recebam esse rótulo.

Quando as conclusões do NYT foram apresentadas, um porta-voz do CPS disse que as autoridades não utilizam o termo "gangue" levianamente. "Se uma pessoa incentiva ou ajuda outra a cometer um homicídio, é correto que ela possa ser processada por seu envolvimento no crime", disse, em nota.

O órgão negou responsabilidade por quaisquer disparidades raciais e destacou que a desproporcionalidade racial é um problema em quase todas as etapas do sistema de justiça criminal. Mas disse que vai começar a acompanhar os processos por iniciativa conjunta quando desenvolver um novo sistema de gestão de processos.

Sob a doutrina da iniciativa conjunta, que existe desde o século 19, uma pessoa pode ter fisicamente cometido o crime, mas seus associados também podem ser condenados.

Um cenário clássico é um assalto em que uma pessoa rouba o dinheiro e outra dirige o carro na fuga. Mas em muitos crimes os papéis são menos claros. Durante décadas, promotores conseguiram condenações simplesmente provando que os cúmplices deveriam haver previsto o crime, mesmo que nunca tivessem a intenção de que ele acontecesse.

Em 2016, a Suprema Corte do Reino Unido rejeitou esse padrão. Daquele momento em diante, para conseguir uma condenação por homicídio sob a doutrina da iniciativa conjunta, os promotores teriam que provar que um cúmplice realmente teve a intenção de que a morte acontecesse. Foi uma alteração de grande importância, e pareceu provável que ela reduziria muito esse tipo de processos.

Os promotores frequentemente se recusam a divulgar dados sobre a frequência com que movem ações ou sobre a cor de pele dos réus —mesmo um inquérito parlamentar tendo lhes dado a recomendação formal de divulgar essas informações. Depois de o NYT registrar queixas junto ao governo e ao CPS, eles cederam e forneceram dados sobre processos por homicídio envolvendo réus múltiplos.

Um exemplo do uso continuado desse mecanismo pôde ser visto neste ano em Manchester, onde um homem negro de 20 anos chamado Giovanni Lawrence foi condenado por homicídio por uma morte cometida por um amigo branco.

Lawrence não estava no local do crime e nunca chegou a tocar na faca. Foi acusado de conduzir um carro numa perseguição que terminou com o assassinato. Mas os promotores não identificaram nenhuma motivação dele, nenhum histórico de violência, não localizaram imagens de câmeras de segurança nem testemunhas do que ocorreu.

'Como vamos ganhar esta eleição?'

No final de 2011, depois de policiais matarem a tiros Mark Duggan, um homem negro, a Inglaterra enfrentou a maior onda de tumultos civis em uma geração. Protestos pacíficos viraram violentos. Rapazes com os rostos escondidos por lenços e máscaras de esqui saquearam, atearam fogo, atiraram garrafas e atacaram policiais.

Os tumultos logo passaram a ser vistos como símbolos das tensões raciais latentes e da raiva represada dos jovens e pobres devido aos cortes feitos pelo governo em programas sociais. Mas o então premiê, David Cameron, os atribuiu a gangues, apesar de estatísticas oficiais não terem demorado a mostrar que elas não tiveram papel importante no que aconteceu. O governo anunciou milhões de libras para combater a criminalidade.

"A polícia enxergou o que aconteceu como uma oportunidade para conseguir recursos", diz Peter Herbert, que até se aposentar, no ano passado, foi um dos poucos juízes negros no Reino Unido.

Desde meados da década de 1990 a criminalidade como um todo vem caindo na Inglaterra e no País de Gales; os índices ainda são muito mais baixos que nos EUA.

"Sempre houve uma tendência de o Partido Trabalhista britânico procurar o Partido Democrata americano para perguntar: ‘Como vamos ganhar esta eleição?’", diz Herbert, que foi assessor do ministro da Justiça no governo Tony Blair.

"Como parte disso, ouviram ‘A justiça criminal é seu ponto fraco. Vocês podem convertê-la em ponto forte —basta falarem em sentenças mais longas e mais segurança nas ruas’ e todos esses clichês que impactam as pessoas mais pobres e as minorias."

Os ministérios do Interior e da Justiça se negaram a comentar. O Conselho Nacional de Chefes de Polícia disse que está engajado em melhorar o policiamento para a população negra, inclusive por meio de novos treinamentos e do uso aumentado de dados e câmeras fixadas às roupas dos policiais.

Os números brutos eram baixos –estimadas 100 a 200 pessoas por ano foram processadas em casos de homicídio com iniciativa conjunta. Mas, num país com apenas algo como 700 homicídios por ano, eles formaram parcela importante.

E ela vem crescendo. Desde a decisão da Suprema Corte, quase 15% dos réus em processos por homicídio foram processados em um grupo de quatro ou mais pessoas, contra quase 10% anteriormente, segundo análise do NYT com dados obtidos pela entidade de jornalismo de direitos humanos Liberty Investigates.

Enquanto esses processos atraíam críticas, a Suprema Corte anunciou sua decisão histórica no processo de 2016 contra Ameen Jogee.

Mudança de nome

Uma dúzia de antigos e atuais promotores e autoridades policiais disseram ao NYT que nunca se cogitou parar ou reduzir o uso da iniciativa conjunta. A questão era como continuar a utilizá-la.

Eles precisavam de uma estratégia para convencer jurados que as pessoas tinham a intenção de cometer crimes, mesmo quando não os tivessem cometido pessoalmente. Um grupo de elite formado por advogados da Procuradoria-Geral, principal consultoria judicial do governo, treinou policiais e promotores para fazer exatamente isso.

Hoje, evidências de "associação" —a relação entre réus— assume um papel-chave para ajudar a comprovar intenção. Posts em redes sociais e até a música que os réus ouvem podem ser usados para influenciar um júri a acreditar que os réus têm mau caráter ou fazem parte de uma gangue.

Kelly Brown, center, holding a poster, whose son Rhamero West was fatally stabbed, in May during an anti-knife-crime march in Manchester, England on May 7, 2022. The zealous use of joint-enterprise case prosecutions is one example of how British political leaders have pursued criminal justice policies that disproportionately punish Black people. (Mary Turner/The New York Times)
Kelly Brown, no centro, segura cartaz com foto do filho, Rhamero West, morto após ser esfaqueado, durante uma marcha contra crimes com faca em Manchester, na Inglaterra - Mary Turner - 7.mai.22/The New York Times

Segundo um relatório do CPS, os promotores eliminaram o rótulo de iniciativa conjunta porque "o próprio termo tornou-se controverso". Eles podem empregar o termo nos tribunais, mas em documentos públicos e nas orientações oficiais passadas a investigadores, o novo termo passou a ser "responsabilidade secundária".

E funcionou.

Dados do Ministério da Justiça mostram que, nos cinco primeiros anos após a decisão da Suprema Corte, o número de processos por homicídio envolvendo quatro réus ou mais aumentou 42%. E os promotores vêm ganhando: o número de condenações aumentou quase 50%.

Pesquisas mostram sempre que a polícia é muito mais propensa a aplicar o rótulo de gangue a pessoas negras. Jovens negros compõem 89% dos nomes no banco de dados de gangues de Manchester, segundo pesquisadores da Universidade Metropolitana de Manchester.

Colaborou Selam Gebrekidan. Tradução de Clara Allain

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