Livro de brasileiro aproxima leitor de combatentes da Guerra da Ucrânia

'Trem para a Ucrânia' descobre rostos e nomes em um conflito no qual prevalece a visão nublada pelo anonimato

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São Paulo

A guerra quase nunca é um tema atraente. Mas um livro que se escreva sobre ela pode ser historicamente preciso e carregado de sedutoras informações. É o caso de "Trem para a Ucrânia", do jornalista gaúcho Rodrigo Lopes.

Ele acaba de publicar um dos primeiros trabalhos de um brasileiro sobre o conflito iniciado em fevereiro deste ano, quando forças militares russas invadiram seu vizinho, criando um caos de milhões de refugiados e muito luto e destruição.

Um dos grandes méritos da escrita de Rodrigo Lopes é o de ter descoberto uma sucessão de rostos e nomes próprios dentro de um conflito em que, para boa parte dos leitores, prevalecia uma visão nublada pelo anonimato. Os dramas dos vivos e dos defuntos são tão distantes que não falariam diretamente à nossa emoção.

Militar ucraniano dispara morteiro na região de Kharkiv
Militar ucraniano dispara morteiro na região de Kharkiv - Serguei Bobok - 25.out.22/AFP

Mas o jornalista descobre dentro da Ucrânia a aflição de outros brasileiros, uma comunidade mais que minoritária, todos eles surpreendidos pela guerra e envolvidos em aventuras para que consigam deixar o país.

É o caso da bióloga de Sorocaba Vanessa Rodrigues, que trabalhava em Kiev. Ou, como prefere o autor, em Kyiv, transliteração do ucraniano e não do russo, como a capital do país é em geral designada.

Vanessa é casada com Vladimir, nascido em Moscou, mas que se mudou para o Brasil ainda menino. Ela está grávida, o que traz um condimento de maior dificuldade ao caminho de volta. E ambos são donos de Thor, um cachorro de 13 anos que, resolvidos todos os problemas, quase não consegue embarcar no avião da FAB que traria todos de volta —porque, entre outras coisas, os donos estavam sem a documentação sanitária do cão.

Foi preciso que uma ativista dos direitos animais fizesse circular um vídeo em que Vanessa pedia uma exceção para embarcar com Thor, que a acompanhava desde seus tempos de solteira no interior de São Paulo.

No mesmo comboio de três carros, um deles conduzido pelo próprio embaixador do Brasil na Ucrânia e que atravessou a fronteira com a Polônia para que o grupo tomasse o avião militar, estavam Matheus e Moreno, dois jogadores de futebol que atuavam em clubes profissionais no país deflagrado e que passaram dias na tentativa inútil de embarcar.

Lopes também descobriu na Ucrânia a paulista Clara Magalhães, que morava na Alemanha e, com o conflito, alugou um carro, encheu-o de produtos de higiene e garrafas de água e rumou para ajudar pessoas que deixassem o país como refugiadas.

Em tempo. O jornalista e escritor é repórter e comentarista da Rádio Gaúcha, do jornal Zero Hora e da rede de televisão RBS. O título de seu livro é porque foi de trem que ele penetrou em território ucraniano, depois de tentar entrar de avião, de carro e mesmo a pé.

Entre os brasileiros, um deles foi à Ucrânia e não mais voltou. André Hack Bahi, 43, nascido em Porto Alegre e pai de três filhos, alistou-se como voluntário das tropas ucranianas, tendo sido muitíssimo bem recebido por ter servido o Exército e trabalhado numa empresa de escolta armada.

Ele foi morto pelas tropas invasoras russas. Cremado, seus familiares receberam suas cinzas e mais a medalha póstuma que a Ucrânia lhe outorgou. André foi o primeiro dos três voluntários brasileiros mortos em combate, nas contas que Lopes fez antes de concluir seu livro.

O autor não presenciou combates nem estava credenciado para tanto. Mas foi testemunha da tensão em cada episódio relatado. Seu espírito de repórter tem a sensibilidade de citar a briga por uma tomada para carregar o celular no chão da estação ferroviária com o solo forrado de ucranianos que esperavam a oportunidade de tomar um trem que os levasse para longe do país.

Há a fumaça pelo incêndio de prédios recém-atingidos por mísseis russos. E há o incessante tocar de sirenes que obriga civis a se refugiar em abrigos que podem ser estações de metrô, localizadas em profundidade e protegidas pela radioatividade do inimigo (coisas da época soviética) ou então o assoalho de um refeitório no subsolo de um grande hotel.

A narrativa é tensa, com momentos de toque de recolher e de estrondos de bombardeios. Ou humanizada pela existência de voluntários que oferecem sopas ou sanduíches para os ucranianos aglomerados em meio às tentativas de cruzar as fronteiras.

Uma última observação sobre o caráter preciso e exemplar com que o livro, em poucas páginas, faz o histórico das complicadas relações entre a Ucrânia e a Rússia, o que é fundamental para que não se atribua o atual conflito à patologia individual do presidente Vladimir Putin.

É uma longa história, que vem no mínimo do século 13, quando o Império Mongol se dividiu entre o Grão-Principado de Moscou e o Grão-Ducado da Lituânia. Calcula-se que 13 milhões de ucranianos morreram entre 1933 e 1945, por meio das criminosas experiências agrícolas de Stálin, que mataram parte da população de desnutrição, e também pela notória empáfia homicida da Alemanha nazista.

Trem para a Ucrânia

  • Preço R$ 54,90 (152 págs.)
  • Autor Rodrigo Lopes
  • Editora Besouro Box
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