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Bento 16 foi exemplo da relação complicada entre mudança e tradição no catolicismo moderno

Papado de Ratzinger talvez tenha sido o último a colocar antigo Ocidente cristão no centro do destino da igreja

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São Carlos (SP)

Quando Bento 16 renunciou às prerrogativas de chefe da Igreja Católica e se tornou o primeiro papa emérito da história, alguns analistas destacaram o risco que isso poderia representar para seu sucessor.

Francisco não demorou a mostrar que seu papado seguiria uma direção bastante distinta da adotada pelo pontífice alemão, e o temor era que o papa "aposentado" se tornasse um foco de atração para conservadores descontentes, emprestando seu prestígio a eles, ainda que involuntariamente.

Em grande medida, esses temores se mostraram infundados. Nos anos após a renúncia, Joseph Ratzinger não só fez questão de destacar que havia decidido deixar o cargo de forma totalmente livre como também evitou aparições públicas e declarações que pudessem ser interpretadas como críticas. Ele e Francisco passaram a se encontrar com relativa frequência, num clima de cordialidade.

O papa Bento 16 cumprimenta fiéis na praça de São Pedro ao chegar ao local para um encontro com jovens da região de Roma, no Vaticano
O papa Bento 16 cumprimenta fiéis na praça de São Pedro ao chegar ao local para um encontro com jovens da região de Roma, no Vaticano - Alberto Pizzoli - 25.mar.10/AFP

Nada disso significa, porém, que as abordagens muito diferentes dos dois pontífices não continuem sendo um sintoma das divisões no catolicismo. Se é simplista retratar essas diferenças só como uma disputa entre uma "igreja de Bento 16" e uma "igreja de Francisco", também é inegável que os que repudiam o atual papa enxergam o papa emérito com saudosismo. Desse ponto de vista, a influência do pontificado de Ratzinger tem potencial para ser bem mais longa do que os seus menos de oito anos de duração.

Muito antes de se tornar papa, Ratzinger já era exemplo da relação complicada entre mudança e tradição no catolicismo moderno. Quando ainda era só um teólogo na casa dos 30 anos, ele tinha participado dos debates do Concílio Vaticano 2º (1962-1965), reunião para adaptar a atuação e a linguagem da igreja ao século 20 –"aggiornamento", ou atualização, era um dos termos mais empregados à época.

O concílio abriu as portas para que os idiomas de cada país substituíssem o latim na missa, para que católicos se engajassem num diálogo amistoso com as demais denominações cristãs e com outras religiões e para que a preocupação com a injustiça social ganhasse mais destaque na doutrina da Igreja.

De início, Ratzinger viu essa lufada de mudanças com otimismo, mas teólogos mais radicais tendiam a pintar o concílio como apenas o começo de uma onda mais ampla de transformações. Alguns defendiam o fim do celibato dos sacerdotes, a possibilidade de incluir mulheres no sacerdócio e a liberação do uso de métodos artificiais de contracepção.

Ratzinger, diante dessas posições mais radicais e da onda de rebeldia estudantil que afetou a universidade alemã onde lecionava no fim dos anos 1960, passou a defender que um "recuo estratégico" era essencial para garantir a integridade da doutrina católica.

Foi para colocar esse programa em prática que Ratzinger, então arcebispo de Munique, foi escolhido pelo papa João Paulo 2º como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé em 1981. O papa polonês também participara do concílio e acreditava ser necessário retornar a uma compreensão mais tradicional do catolicismo. A parceria estreita entre os dois durou mais de três décadas e só terminou com a morte de João Paulo 2º, em 2005. Diante da perda de uma figura tão titânica, os cardeais optaram por eleger Ratzinger como uma figura que representasse a continuidade do papa que morrera.

Como figura pública, porém, Bento 16 sempre foi muito diferente de João Paulo 2º. Era injusto pintá-lo como especialmente preconceituoso ou belicoso, como nos memes infelizes que o transformavam, pela semelhança física, no imperador Palpatine de "Star Wars".

Mas certa rigidez acadêmica o levou a fazer declarações que pareciam menosprezar o islã, por exemplo, provocando um mal-estar internacional que ele fez o possível para desfazer ao rezar numa mesquita turca.

Preocupado com a crescente descristianização da Europa, continente que via como essencial para o legado histórico da fé católica, ele podia passar a impressão de alguém que ainda se agarrava a fiapos de privilégios antigos, o que fez com que ele começasse a ganhar certo status de ícone para movimentos políticos que queriam um retorno à hegemonia política e cultural do cristianismo no Ocidente –embora ele próprio se declarasse um admirador da social-democracia europeia. Esse legado segue um bocado vivo.

Mas o grande "curinga" que talvez defina o que será desse legado, a carta cujos efeitos ainda são difíceis de prever, é a expansão católica longe do Ocidente, na África e na Ásia. O catolicismo nessas regiões, em vez de parecer acuado, está em franco crescimento em termos demográficos e de influência cultural.

É bastante conservador do ponto de vista dos costumes, mas suas preocupações dificilmente vão coincidir por muito tempo com as das "guerras culturais". Com isso em conta, o papado de Bento 16 talvez tenha sido um dos últimos a colocar o antigo Ocidente cristão no centro do destino da Igreja.

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