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Livro de Walter Rodney sobre África ganha versão em português, mas transpira anacronismos

Obra de 1972 é referência histórica, mas mudanças no mundo não foram as que o ativista guianês esperava

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São Paulo

É cômodo mergulhar de cabeça no túnel do tempo e encontrar um mundo em que a Guerra Fria, para os simpatizantes da esquerda, dividia as ideias entre as positivas (luta de classes, libertação) e as negativas (racismo, imperialismo). E imaginar que uma fronteira utopicamente perfumada dividia a abundância material dos países socialistas e a estagnação no mundo escravizado pelo colonialismo e pelo mercado.

É mais ou menos esse o roteiro presenteado por "Como a Europa Subdesenvolveu a África", do ativista Walter Rodney (1942-1980), assassinado em Georgetown, na ex-Guiana Britânica, onde nasceu e militou. Seu mais importante livro, publicado originalmente em 1972, saiu agora em primeira tradução pela Boitempo.

Militares de Gana em evento pelo Dia da Independência do país, em Cape Coast - Nipah Dennis - 6.mar.22/AFP

Uma ressalva inicial. As desigualdades e os mecanismos de exploração dos recursos dos países mais pobres não chegaram ao fim desde que Rodney se tornou uma espécie de mártir da negritude de esquerda. Mas as mudanças que deram uma cara nova às relações internacionais não foram aquelas que o militante guianês esperava.

Vejamos a África, seu campo central de interesse —ele também lecionou na Tanzânia. Depois da queda do Muro de Berlim (1989), esfriou consideravelmente a disputa por espaços de influência no continente, que funcionava como constante ignição entre Estados Unidos e União Soviética.

Com o desaparecimento desta última, os países africanos ficaram abrigados dessa forma de embate geopolítico. Até que aparecesse a parceria comercial e de financiamento de projetos da nova potência emergente mundial, a China.

Rodney não viveu para presenciar esse novo cenário, e seu livro envelheceu por estar centrado nas relações de dependência das ex-colônias africanas com suas ex-metrópoles coloniais, como Grã-Bretanha, Bélgica ou França.

Nos últimos 30 anos também entrou em colapso o bicromatismo ideológico que dividia o planeta entre capitalistas e socialistas —pouco importa o grau de impureza com que esses dois modelos se apresentavam.

O livro de Rodney transpira anacronismos quase engraçados. O prefácio da marxista americana Angela Davis, por exemplo, diz que é preciso destruir o racismo para que a destruição do capitalismo venha logo atrás. Simples assim.

O epíteto de um dos capítulos traz o trecho de um discurso feito em 1964, na Suíça, por Ernesto Che Guevara. O então ministro cubano contrapõe o imaginário alto índice de desenvolvimento dos países socialistas à suposta estagnação econômica de nações em desenvolvimento. Dois diagnósticos no mínimo redutores e inverídicos.

Em outras palavras, os conceitos centrais desse modelo são manquitolantes, e a pesada consistência retórica acaba por prejudicar a tese central do livro. A saber, que a África se tornou subdesenvolvida depois que, no século 16, os europeus chegaram com suas armas modernas e seu olho gordo colonial.

Um dos pressupostos de Rodney é o da existência na África de sociedades prósperas antes da chegada do europeu. Elas teriam a tecnologia necessária para que todos vivessem em abundância. A questão básica está na não menção de uma bibliografia e de estudos empíricos que sustentem essa visão.

Tomemos a seguinte frase: "Em Catanga e na Zâmbia, o cobre local permanecia o preferido em relação ao importado, o que também se deu com o ferro em locais como Serra Leoa". Isso é aparentemente verdade, mas o texto não remete a notas de rodapé em que referências históricas ou econômicas possam calçar essa e centenas de outras afirmações.

Há no final da brochura uma seção de 19 páginas em que um trabalhoso índice remissivo traz termos que remetem um ao outro, sem a intervenção enriquecedora de bibliografias.

Estas aparecem também numa seção final, mas sob a forma de recomendações de leitura —iniciadas por Marx e Engels, é claro, e com prevalência de livros em inglês. Autores que publicaram em francês estão raramente presentes. E vejam que o neocolonialismo foi um tema em destaque na França dos anos 1960 e 1970, por exemplo com os textos do padre dominicano e economista Louis-Joseph Lebret (1897-1966).

O conjunto de senões aqui apontado pode gerar a impressão de que a leitura de Walter Rodney não vale em absoluto a pena. Mas não é bem assim. Todo texto, mesmo clássicos incontestáveis, traz as marcas do período em que foi redigido.

No caso do ativista da Guiana —ele se graduou na Jamaica— temos acesso a uma camada arqueológica de um pensamento que existe hoje muito mais como referência histórica. De certo modo, é fundamental conhecermos a ancestralidade das ideias atuais para avaliarmos as razões que as levaram a serem ultrapassadas, como uma forma de pensar com o punho erguido, sobre o subdesenvolvimento, a revolução socialista e a pobreza.

Como a Europa Subdesenvolveu a África

  • Autor Walter Rodney
  • Editora Boitempo
  • Tradução Heci Regina Candiani
  • 352 págs. R$ 99
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