Museu de Paris retarda devolução de 18 mil crânios a países e povos de origem

Especialistas alertam que postura em relação a restos mortais de líderes tribais e indígenas pode criar imbróglio diplomático

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Constant Méheut
Paris | The New York Times

Com sua fachada art déco que dá para a Torre Eiffel, o Museu da Humanidade é um marco de Paris. Centenas de milhares o visitam todo ano para ver esqueletos pré-históricos e estatuetas da antiguidade.

Mas, embaixo das galerias, um acervo mais controverso se esconde no subsolo: 18 mil caveiras que incluem os restos mortais de chefes tribais africanos, rebeldes cambojanos e indígenas da Oceania.

Muitas foram colhidas em antigas colônias francesas, e a coleção também inclui os crânios de mais de 200 indígenas americanos, entre os quais os das tribos sioux e navajo.

Fachada do Museu da Humanidade, em Paris
Fachada do Museu da Humanidade, em Paris - Violette Franchi - 28.nov.22/The New York Times

Guardados em caixas de papelão armazenadas sobre prateleiras metálicas, os crânios formam uma das maiores coleções do tipo no mundo. Mas também são recordações inequívocas de um passado controverso e, como tal, têm sido envoltas em sigilo. Os dados sobre a identidade dos crânios e contextos em que foram colhidos –o que poderia abrir a porta a pedidos de restituição— nunca foram levados a público, mas suas linhas gerais constam de documentos aos quais o New York Times teve acesso.

Segundo um memorando confidencial, o acervo incluía ossos de Mamadou Lamine, líder muçulmano africano do século 19 que liderou uma rebelião contra tropas coloniais francesas; de uma família de inuítes canadenses exposta em um zoológico humano em Paris em 1881; e de cinco vítimas do genocídio armênio da década de 1910.

"Às vezes os supervisores diziam ‘precisamos esconder isso’", conta Philippe Mennecier, linguista aposentado e curador que trabalhou no local por 40 anos. "O museu tem medo de escândalos."

A opacidade destoa do espírito do crescente acerto de contas da França com seu legado colonial, que vem abalando muitas instituições culturais. E a falta de transparência dificulta pedidos de restituição por antigas colônias ou povos conquistados —nos quais restos humanos são citados como prioridade. É um problema que vem dando trabalho e criando dúvidas nos museus da Europa.

A França tem sido líder na investigação e na devolução de coletâneas de artefatos da era colonial. Mas está atrasada na devolução de restos humanos. Museus de Alemanha, Holanda e Bélgica já criaram protocolos claros para lidar com eles, com critérios de restituição diferentes dos usados com artefatos.

Os pedidos de restituição geralmente consideram as condições sob as quais os objetos foram levados; no caso de restos mortais, geralmente só é necessário comprovar um vínculo ancestral.

In an undated photo from JC Domenech, via National Museum of Natural History, France, an installation at the Museum of Mankind in Paris.
Instalação com artefatos expostos em uma das alas do Museu da Humanidade de Paris - Museu da Humanidade de Paris via The New York Times

Na França, dizem críticos, o Museu da Humanidade limita as pesquisas sobre itens delicados de seu acervo, retendo informações essenciais para os pedidos de restituição.

O museu tem uma política de longa data de devolver apenas restos mortais "nominalmente identificados" —ou seja, fragmentos de corpos de uma pessoa específica que tenha um vínculo com o requerente. Acadêmicos dizem que essa é uma tática restritiva que visa bloquear a devolução.

Christine Lefèvre, do Museu de História Natural, ao qual a instituição é subordinada, explica: "As coleções estão abertas a qualquer pessoa que venha com um projeto de pesquisa sólido e sério". Além disso, a legislação francesa converteu qualquer devolução num processo trabalhoso e demorado. "Nossos museus deveriam fazer um exame de consciência", diz André Delpuech, ex-diretor do museu, que deixou o cargo em janeiro. "Até agora, porém, vêm seguindo a política de enfiar a cabeça na areia."

Em 1989, Mennecier criou o primeiro banco de dados da coleção. Isso permitiu identificar centenas de crânios "potencialmente litigiosos", em suas palavras: de combatentes anticoloniais e indígenas, colecionados como troféus de guerra ou saqueados por exploradores.

Prevendo problemas potenciais, Mennecier diz que nos últimos anos alertou diretores de museus, exortando-os a "informar as mais altas autoridades, embaixadas e comunidades relevantes". Mas seus avisos não foram ouvidos, dizem ele e Alain Froment, antropólogo do museu.

Lefèvre e Martin Friess, responsável pelas coleções de antropologia moderna da instituição, dizem que as informações não foram divulgadas devido a preocupações com privacidade, ao receio de criar controvérsias e a incertezas em torno da identidade de alguns dos restos mortais.

A origem de um crânio classificado como sendo de um chefe sioux chamado Nuvem Branca, por exemplo, estava em dúvida, segundo Friess. Mas acadêmicos e legisladores dizem que a posição adotada pelo museu nasceu de uma preocupação maior: o receio de que a transparência abrisse as comportas a uma enxurrada de pedidos de restituição.

Como outras instituições, o lugar vem recebendo cada vez mais pedidos de repatriação de objetos —de Madagascar à Argentina e povos do Havaí. Mas não investiu muito em pesquisas para determinar as origens de seu acervo de restos humanos nem divulgou diretrizes para manuseio e devolução.

Nas duas últimas décadas, a França devolveu apenas 50 conjuntos de restos mortais para África do Sul, Nova Zelândia e Argélia, entre outros países. No mesmo período, segundo um pesquisador da Escola Médica de Brandenburgo, a Alemanha devolveu oito vezes mais.

"Isso faz a França parecer atrasada", comenta o historiador Jeremiah Garsha, do University College Dublin, observando que o país tem uma história colonial muito mais longa que o vizinho.

Parte da razão dessa discrepância está em políticas como a exigência de identificação nominal feita pelo Museu da Humanidade. Segundo Mennecier e Froment, em função dela os planos de devolver restos indígenas australianos da coleção, a maioria dos quais são inidentificáveis, estão parados.

Mas a política "não tem base legal clara", conforme destacado no memorando confidencial, contradiz relatório de 2018 encomendado pelo governo francês que recomendou que restos anônimos que podem ser vinculados a uma família ou grupo indígena devam ser considerados retornáveis. O relatório nunca foi levado a público, e suas propostas, nunca adotadas.

Lefèvre diz que a filiação a uma comunidade é um critério demasiado vago e que vínculos com grupos do século 19 são difíceis de confirmar. Mas pondera que crânios anônimos de indivíduos cujas funções sociais podem ser determinadas, como líderes tribais, poderiam ser considerados retornáveis.

Para complicar mais, objetos que integram os acervos de museus públicos são propriedade do Estado e não podem passar para outras mãos, exceto se a devolução for promulgada em lei —processo trabalhoso, que em alguns casos tem levado a França a ceder restos mortais em vez de ceder a propriedade deles.

Um representante do Ministério da Cultura disse que uma lei abrangente está sendo redigida para regulamentar devoluções futuras do tipo. Mas Pierre Ouzoulias, senador de esquerda que já produziu vários relatórios sobre restituição, afirma que o governo vem dando provas de tudo, menos boa vontade.

O governo rejeitou uma proposta do Senado de criar um conselho de assessoria científica para restituições e ainda não examinou um projeto de lei, aprovado em janeiro, que acabaria com a necessidade de o Parlamento aprovar cada restituição. Para Mennecier e Delpuech, a opacidade da instituição e a atitude das autoridades de empurrar o problema com a barriga terão repercussões, na medida em que aumentam os chamados por um acerto de contas com o passado.

Ouzoulias voltou a falar desse receio diante de uma comissão parlamentar no ano passado. Aludindo aos crânios de vítimas do genocídio armênio, disse que a França "corre o risco de entrar em um conflito diplomático grave com alguns países quando tomarem conhecimento do conteúdo" dos acervos. "É hora de tudo isso acabar", afirmou. "Não podemos mais conviver com esqueletos em nossos armários."

Tradução de Clara Allain

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