Descrição de chapéu The New York Times LGBTQIA+

Comunidade de drag queens resiste nas Filipinas, e 'golden gays' voltam aos palcos

Grupo que se ajuda há décadas e divide casa em Manila retoma shows após fim das restrições contra a Covid no país

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Hannah Reyes Morales
Manila | The New York Times

Nos dias de semana em Manila, capital das Filipinas, Al Enriquez, 86, empurra uma velha carrocinha de madeira, sob um guarda-chuva de arco-íris preso à madeira gasta. Ele vende doces e cigarros na porta de um mercado. Nas ruas cheias e caóticas, envolto em uma camiseta e shorts de basquete, frouxos em seu corpo pequeno e envelhecido, frequentemente ele passa despercebido pela multidão.

Nos fins de semana, porém, Enriquez atende pelo nome artístico de Carmen de la Rue e se transforma em uma dançarina de vestido longo, maquiagem elaborada e sapato de salto alto.

Ele pertence a uma comunidade de gays mais velhos que se denomina Golden Gays. Eles vivem juntos há décadas, apresentando shows e desfiles nos fins de semana para sobreviver. O grupo foi fundado nos anos 1970 por Justo, legislador de Manila e ativista contra a epidemia de Aids. Ele abriu sua casa para abrigar as célebres "lolas" (avós), termo carinhoso que o grupo adotou para se referir a seus integrantes.

Al Enriquez, a member of the Golden Gays, at home in Manila, the Philippines, on July 15, 2022. On weekends, he goes by the stage name Carmen de la Rue, transforming into a glorious showgirl. (Hannah Reyes Morales/The New York Times)
Al Enriquez, a Carmen de la Rue, membro do grupo Golden Gays, experimenta acessórios em casa, em Manila - Hannah Reyes Morales/The New York Times

Justo queria criar uma casa de repouso para gays que viviam nas ruas da capital, rejeitados por suas famílias e pela sociedade. A comunidade evoluiu para um lugar cujos moradores também eram incentivados a assumir a identidade de gênero. Alguns membros, como Enriquez, incorporam personalidades masculinas e femininas; outros mantém a identidade de palco feminina na vida cotidiana.

Justo abrigou os Golden Gays na própria casa até sua morte, em 2012. Sem ele como patrono, o grupo, que hoje conta cerca de 20 pessoas, voltou à rua. "Muitos tiveram que voltar para o lugar de onde vieram", diz Ramon Busa, atual presidente dos Golden Gays, que atende por Lola Mon ou Monique de la Rue.

Um deles, Federico Ramasamy, mais conhecido como Lola Rica, conseguiu trabalho como varredor de rua e ganhou um quarto numa favela. Depois amontoou seus pertences e figurinos no quartinho e acolheu outros Golden Gays que não tinham onde morar. Tragicamente, um incêndio queimou o apartamento. Todos se salvaram, mas os sapatos, vestidos, perucas e fotos de Lola Rica foram queimados.

"O tempo é limitado. Nossa filosofia –porque somos dançarinas– é que o show tem de continuar. O curso da vida deve continuar fluindo", diz Lola Mon, 72.

Foi só em 2018 que o grupo finalmente ganhou dinheiro suficiente para alugar uma pequena casa para compartilhar em Manila. "Nós nos consideramos órfãos, embora talvez isso não se aplique, porque somos velhos", ri Lola Mon. "Nós protegemos uns aos outros, porque não temos cuidadores para nos apoiar."

Nas Filipinas existem poucos sistemas de apoio além da família. Mais da metade dos cidadãos com 60 anos ou mais vive sem aposentadoria, o que automaticamente os classifica como vivendo na pobreza, segundo o governo. A sociedade predominantemente católica do país há muito discrimina a comunidade LGBTQIA+, o que significa que muitos Golden Gays não conseguiam encontrar empregos quando jovens. Aposentadorias estavam fora de alcance.

"Eles foram expulsos da casa pela família de Justo, e acho que esse tipo de história despertou na comunidade a experiência comum de ser rejeitado, expulso de onde você quer morar", diz Mela Habijan, rainha de beleza e ativista da comunidade LGBT.

"Essa experiência compartilhada sempre será a âncora da comunidade. Sabemos como é ser rejeitado, o que é não ter nada. Conhecemos o medo de ser expulsos da própria casa."

Depois de serem despejados, alguns membros dos Golden Gays foram para abrigos, mas disseram que se sentiam inseguros em dormitórios masculinos e desconfortáveis com o fato de muitos desses locais nas Filipinas serem administrados por organizações ligadas a igrejas. Na ausência de uma estrutura familiar tradicional, tiveram que criar os próprios sistemas de apoio.

Durante a pandemia, o governo proibiu os filipinos mais velhos, considerados mais vulneráveis à infecção por Covid, de sair de casa. Também vetou grandes reuniões, para evitar novos surtos, resultando na suspensão das apresentações dos Golden Gays. "As festas acabaram. Não havia mais shows. Os bares foram fechados. De onde viria o dinheiro? Dançarinas foram as primeiras a ser atingidas pela pandemia", diz Robert Pangilinan, 55, outro integrante do grupo, que atende pelo nome artístico de Odessa Jones.

O grupo sobreviveu com doações de fãs e apoiadores. "Fomos amados. A comunidade não nos abandonou."

A casa dos Golden Gays é pintada de verde, a porta enfeitada com borlas de arco-íris dando as boas-vindas. Fotografias de shows decoram as paredes. Os moradores dividem tarefas como limpar, cozinhar e cuidar dos outros. Tornar-se um residente é um processo muito informal, que mudou ao longo dos anos. As pessoas podem ser encaminhadas por outros moradores, e as portas estão abertas para artistas que estão envelhecendo e pedem ou precisam de abrigo.

Em uma tarde recente, risos enchiam a casa junto com o borbulhar do cozido no fogão. Enriquez deu as mãos a Odessa Jones. Uma pequena urna de mármore estava numa prateleira, com as cinzas de Lola Rica —que morreu durante a pandemia.

Por causa das restrições da Covid, os Golden Gays não puderam realizar um funeral adequado para Lola Rica. Um dia, quando tiverem dinheiro, sonham em ir à praia, talvez de férias, vestidas de renda preta e espalhar as cinzas no mar.

Agora que as regras da Covid foram atenuadas nas Filipinas, os Golden Gays voltaram ao palco. Em um domingo úmido recente, num modesto shopping de Manila, eles se prepararam para um show, usando maquiagem elaborada e vestidos brilhantes. Hoje, esses preparativos exigem um pouco mais de esforço. Enriquez não consegue se abaixar para calçar salto alto. Lola Mon às vezes precisa de apoio para subir ao palco. Uma nova geração –os Silver Gays– tornou-se fundamental para o show.

As apresentações dos Golden Gays geralmente são concursos durante os quais cada lola exibe um talento, como dar cambalhotas com salto alto ou dublar canções. Os frequentadores do shopping param para dar uma olhada. Seus olhos brilham. Os shows são uma reminiscência da cultura filipina da "fiesta", onde cada bairro celebra as festas de um santo padroeiro.

"É alegre", diz Odessa Jones. "Senti saudades dos aplausos e dos gritos do público. Tenho uma energia ilimitada, porque quero mostrar às pessoas que ainda estamos vivos."

Quando o show terminou naquele domingo, os Golden Gays se deram as mãos enquanto cantavam "If We Hold on Together" (se nós resistirmos juntos), de Diana Ross. Depois do show, foram para casa comemorar a apresentação com cerveja. "Nossa casa é linda, porque é onde existe o amor completo", diz Lola Mon. "O amor circula entre nós. Nossa camaradagem é total e, como estamos juntos o tempo todo, nosso companheirismo é sólido."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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