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Drag queens lutam contra intimidação violenta em nova trincheira de debate sobre gênero nos EUA

Conservadores atacam apresentações voltadas a famílias e extremistas tentam suspender eventos à força

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J. David Goodman Ruth Graham
Houston | The New York Times

Antes mesmo de o show de drag queens começar em Southern Pines, na Carolina do Norte, manifestantes já estavam do lado de fora. A polícia se posicionou diante do pequeno teatro, separando quem protestava dos que haviam comparecido para garantir que o espetáculo acontecesse. O porte de armas foi proibido nas redondezas.

Mas quando o show começou, o teatro ficou no escuro de repente —como boa parte da cidade. Segundo autoridades, o blecaute foi provocado por tiros disparados contra duas subestações elétricas.

Naomi Dix, drag queen que estava no palco do show da Carolina do Norte quando as luzes se apagaram, em Durham
Naomi Dix, drag queen que estava no palco do show quando as luzes se apagaram em Durham, na Carolina do Norte - Kate Medley - 7.dez.22/The New York Times

Investigadores não identificaram qualquer ligação entre o ataque e a apresentação. Mas para muitas pessoas dentro e fora da comunidade drag, a coincidência temporal levou a suspeitas imediatas. Nos últimos meses os shows de drag queens, hoje um elemento habitual de entretenimento em grande parte dos EUA, têm se convertido numa linha de frente cada vez mais tensa e armada na complicada guerra sobre gênero e identidade no país.

Em San Lorenzo, na Califórnia, em junho, um grupo ligado à organização de extrema direita Proud Boys entrou numa biblioteca pública para impedir uma drag de ler um livro para crianças. Em Roanoke, no Texas, em agosto, manifestantes progressistas confrontaram conservadores armados com fuzis onde acontecia um brunch com drag queens.

Em Memphis, no Tennessee, em setembro, manifestantes armados impuseram o cancelamento de um evento de drags no Museu de Ciência e História. Na noite do Halloween, um homem atirou um coquetel molotov contra uma loja de donuts em Tulsa, Oklahoma, que tinha recebido uma apresentação.

E o atirador em Colorado Springs que matou cinco pessoas no Club Q no mês passado atacou um espaço que havia sediado performances na mesma noite e estava divulgando um "brunch de drag para todas as idades" no dia seguinte.

Dezenas de shows e sessões de leitura em bibliotecas vêm atraindo protestos e ameaças. Antes das midterms, comentaristas conservadores e políticos republicanos começaram a intensificar o discurso acusando performers de visar a crianças e tentar sexualizá-las.

Na Flórida, a administração do governador Ron DeSantis registrou queixa contra um restaurante de Miami cujos brunches de fim de semana eram tão populares que tinham filas saindo pela porta do estabelecimento. "Ter crianças envolvidas nisso está errado. É uma tendência perturbadora", disse o republicano em fala preconceituosa.

O presidente de uma organização conservadora criticou uma leitura por drag queens promovida num zoológico de Montana alegando num programa de rádio, sem apresentar qualquer evidência, que o objetivo do evento era aliciar crianças. "Eles doutrinam crianças", afirmou o senador republicano pela Flórida Marco Rubio, também de forma abertamente falsa, num anúncio de campanha que mostrava a imagem de uma drag queen lendo para crianças. "Tentam converter meninos em meninas."

A ideia de ter artistas drag lendo para crianças em bibliotecas e escolas foi proposta em 2015 pelo pai queer de uma criança, interessado em criar um espaço inclusivo para crianças, segundo Jonathan Hamilt, diretor-executivo da Drag Story Hour, que organiza leituras públicas nos EUA. A partir do primeiro evento, no distrito de Castro, em San Francisco, a ideia ganhou força e se disseminou.

"Quando eu era criança não havia essa representação e visibilidade —e eu não me sentia bem com quem eu era", conta a drag queen Cholula Lemon, de Nova York, que já fez leituras para crianças em dezenas de eventos e pediu para ser citada pelo nome artístico. "É uma oportunidade de ensinar às crianças sobre o valor da aceitação e, ao mesmo tempo, promover o gosto pela leitura."

Os eventos se parecem com quase todos os de contação de histórias, mas o leitor, nesse caso, se veste de maneira altamente estilizada e de gênero fluido, e os textos lidos às vezes falam de aceitar a si mesmo e a outros ou exploram a diversidade de estruturas familiares.

Show da drag queen Cholula Lemon, no Brooklyn
Show da drag queen Cholula Lemon, no Brooklyn - Ahmed Gaber - 6.dez.22/The New York Times

Vários estados estudam projetos de lei para limitar os shows de drag queens. É um esforço legislativo que também pode afetar os direitos de pessoas transgênero e sua possibilidade de atuar sobre um palco em público, independentemente da natureza do espetáculo.

Parlamentares no Tennessee e em Idaho assinalaram a intenção de proibir apresentações públicas de drag queens. No Texas, um projeto quer vetar a presença de menores em qualquer show em que o artista "exibe uma identidade de gênero que difere do gênero que lhe foi atribuído quando nasceu, usando roupas, maquiagens ou outros marcadores físicos".

Muitos eventos ainda são restritos a adultos, e algumas performers dizem não querer se apresentar para crianças. Outros acolhem famílias, visando oferecer um espaço acolhedor —eles incluem shows no horário do brunch e leituras públicas feitas por drag queens para um público infantil.

"Drags não corriam o risco de serem atacadas no passado porque se apresentavam na TV ou em bares à noite, um lugar para onde você não iria com crianças", diz Joe E. Jeffreys, historiador do movimento drag que leciona na Universidade de Nova York. "Mas a Drag Story Hour levou esse mundo a um espaço mais público."

Entre conservadores, a divisão ganhou destaque em 2019 com um choque de opiniões entre os analistas Sohrab Ahmari, que defendia o uso do poder do Estado para combater o que ele via como "fetichismo de travestis", e David French, a favor da proteção dos princípios da liberdade de expressão, mesmo diante de um discurso que ele próprio considerava repulsivo.

Na esteira da eleição de 2020, o nível de agressividade e rejeição aos eventos começou a crescer online, alimentado por vídeos de performances de drag queens compartilhados amplamente por contas de direita de grande destaque, como a Libs of TikTok.

Christopher Rufo, ativista conservador que ajudou a converter a chamada "teoria racial crítica" em bicho-papão dos republicanos, diz que soube de apresentações no Texas nas quais teria havido simulação de atos sexuais. "É um terreno que não se parece mais com vovós lendo histórias para crianças."

Mesmo os eventos Drag Story Hour têm se mostrado problemáticos para conservadores que se preocupam com o fato de crianças serem apresentadas a maneiras diferentes de pensar o gênero.

O pastor Michael Foster, em Ohio, decidiu promover uma "hora de contação de histórias com um pastor" na biblioteca pública local. Cerca de 35 crianças compareceram ao primeiro evento. Ninguém protestou.

Mas, para as drags, o risco de enfrentar manifestações agressivas vem crescendo. As artistas associadas ao grupo de Hamilt receberam treinamento de segurança para eventos públicos e o ambiente online.

Descrevendo o momento em que Proud Boys interromperam sua tentativa de ler para crianças, Panda Dulce diz: "Congelei como um animal. Senti medo pelas crianças". Segundo ela, um dos manifestantes usava camiseta com as palavras "Mate seu pedófilo local" e a foto de um fuzil AR-15. "Me chamaram de aliciadora e 'traveco'. Interrogaram as famílias de forma agressiva, perguntando por que estavam levando seus filhos para um pedófilo."

Depois da interrupção, a leitura —de "Families, Families, Families!", de Suzanne Lang, livro ilustrado sobre diferentes tipos de famílias, com animais de zoológico— prosseguiu. Os homens foram investigados por crimes de ódio, mas não foram indiciados, segundo o tenente Ray Kelly, da polícia de Alameda. "O condado aprova o evento e depois do episódio dobrou o número de sessões."

Pais frequentemente viram alvos de manifestantes. Gretchen Veling levou o filho de 17 anos, que se identifica como não binário, para o brunch com drags em Roanoke em agosto. Ela conta que pensou que talvez houvesse protestos, mas se surpreendeu com a presença de tantos seguranças armados.

"Nunca havia visto algo assim na vida", afirma, acrescentando que a família se sentiu tranquilizada pelas bandeiras de arco-íris e pelo fato de um dos guardas elogiar os brincos do jovem. A apresentação, segundo ela, foi apropriada para o público familiar. "Quando voltamos ao carro, ouvi: ‘Foi um dos melhores eventos em que já estive’."

O show de drag queens na Carolina do Norte estava com ingressos esgotados; havia mais de 300 pessoas na plateia. Não era o primeiro evento do tipo em Southern Pines, mas atraíra mais atenção negativa online que eventos anteriores, segundo Naomi Dix, que apresentou o show —ela pediu para ser mencionada apenas pelo nome artístico.

Quando as luzes se apagaram, Naomi pensou que fosse parte do show, e num primeiro momento os espectadores pensaram o mesmo. Naquele momento, os manifestantes do lado de fora já tinham se dispersado. Em pouco tempo as pessoas no teatro começaram a cantar, iluminando o espaço com os celulares. "Naquele momento, meu papel passou a ser ir para a plateia e tranquilizar a todos", diz.

Só mais tarde, quando se espalhou a notícia de que o corte de luz fora proposital, ela começou a temer o risco de ligação com o show. Investigadores não descartaram a possibilidade. Enquanto isso, Naomi Dix prepara uma nova apresentação, para compensar a que foi interrompida.

Tradução de Clara Allain

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