Descrição de chapéu The New York Times Itália

Envenenamentos tornam caçada de trufas atividade de risco para cães na Itália

Para proteger áreas ricas, caçadores procuram assustar forasteiros e acabar com concorrência

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Jason Horowitz
Camerata Nuova (Itália) | The New York Times

Em uma manhã ensolarada nas montanhas próximas à pacata cidade de Camerata Nuova, na Itália, uma cadela pequena e de pelos encaracolados chamada Bella corria entre as bétulas.

Seu dono, apoiado numa longa pá em forma de arpão, gritava para encorajá-la. Bella disparou em direção a uma árvore e escavou sob um tapete de folhas mortas quase congelado.

"Ouro negro", disse Renato Tomassetti, 80, quando Bella apareceu com o que parecia ser uma bola de tênis queimada, com odor forte. Ele e um grupo de outros caçadores de trufas seguiram a cadela para o interior da floresta nas montanhas Simbruini, onde ela farejou novamente perto de outra árvore.

"Para!", gritou Tomassetti. "Deixa! Deixa!"

Cachorro caça trufas em floresta próxima de Camerata Nuova, na Itália
Cachorro caça trufas em floresta próxima de Camerata Nuova, na Itália - Stephanie Gengotti - 12.jan.23/The New York Times

Os homens mais jovens correram na frente e afastaram Bella do cadáver de uma raposa. O corpo trazia as marcas da morte por envenenamento por estricnina –olhos ensanguentados, caninos à mostra, numa careta dolorosa, membros estendidos. Tomassetti rapidamente colocou uma focinheira em Bella, uma enérgica lagotto romagnolo (o "cão das trufas" italiano), enquanto os caçadores de trufas espiavam sombriamente a raposa morta. A polícia local, os Carabinieri, trouxe suas réguas de medição e um saco de congelamento, tratando a área como uma cena de crime.

"Podia ter sido um dos nossos cachorros", disse Tomassetti, culpando "assassinos" desconhecidos por tentar eliminar a concorrência para ter a floresta rica em trufas "só para eles". Os homens ao seu redor acenaram com a cabeça, fumaram seus cigarros e se declararam exasperados com as eternas guerras das trufas na Itália. "Esse massacre tem de acabar!", gritou Belardo Bravi, 46, angustiado.

Poucas coisas evocam um ideal arcádico tão encantador –e uma visão tão romântica do velho mundo italiano– quanto o intenso vínculo entre caçadores de trufas e seus cães. Eles trabalham juntos em meio às névoas do outono e à neve do inverno para desenterrar tubérculos ambrosíacos, tesouros raspados em massas, ralados em molhos ou infundidos em óleos para os paladares mais sofisticados e ricos.

A caça às trufas é uma tradição frequentemente imaginada como um passatempo da classe alta, a resposta italiana à caça à raposa, e inspirou "experiências" de turismo de luxo, museus e filmes.

Mas cavar logo abaixo dessa superfície revela um lado sinistro, assassino e sedento de dinheiro da caça de trufas, que mostra os fungos menos como uma iguaria italiana perfumada do que como o diamante sangrento de uma guerra secreta, mortal e perpétua.

Para proteger as áreas ricas em trufas lucrativas, os caçadores locais procuram assustar os forasteiros e acabar com a concorrência explodindo caminhonetes, atirando em carros e golpeando uns aos outros com suas pás "vanghetto". Em 2018, um cachorro springer spaniel chamado Willa se tornou o sexto assassinado em dois anos em Brignano Frascata, pequena cidade no Piemonte, região italiana conhecida por suas luxuosas trufas brancas.

Trufa encontrada pela cadela Bella em floresta próxima de Camerata Nuova, na Itália
Trufa encontrada pela cadela Bella em floresta próxima de Camerata Nuova, na Itália - Stephanie Gengotti - 12.jan.23/The New York Times

"Centenas de cães são mortos por ano", disse Tomassetti, que também é presidente honorário da associação de caçadores de trufas da região do Lácio, que, segundo ele, irritou os moradores ao combater com sucesso as tentativas da cidade de impedir que forasteiros garimpassem ouro negro em suas colinas. "Acontece em toda a Itália."

Grande parte da violência parece ter ocorrido na região central da Itália de Abruzzo, que faz fronteira com a Camerata Nuova e onde os envenenamentos foram numerosos o suficiente para serem mapeados. Os caçadores de trufas dizem que grande parte da violência raramente surge porque os donos de cães não querem que seus campos secretos de trufas sejam conhecidos. Em vez disso, a retribuição é feita por meio de um poço de água ou um campo envenenados. Às vezes há vítimas civis.

Em 7 de janeiro, Martina Ercoli e sua família fizeram uma caminhada pela natureza no Monte Simbruini com seu labrador marrom de um ano e meio, Brando. Ele comeu uma salsicha envenenada e morreu nos braços do irmão dela. "Os caçadores de trufas atacam novamente", disseram os moradores, segundo ela.

Dois dias depois, Ercoli lamentou a perda num post no Facebook, culpando "esses criminosos, presumivelmente pessoas que caçam trufas e espalham iscas envenenadas para matar os cães dos outros na guerra", atraindo atenção indesejada para a pequena cidade. "Não é certo que o mundo nos conheça por isso", disse Vincenzo Pelosi, 67, dono da cafeteria na tranquila praça da cidade que ostenta um pôster dos filmes de faroeste filmados nas colinas ao redor. "Houve 54 faroestes filmados aqui!"

Horas antes de Bella encontrar a raposa, Tomassetti, que mora em Roma, juntou-se a outros caçadores de trufas vestindo camuflagem e casacos da Associação Nacional de Caçadores de Trufas da Itália, diante do bar de Pelosi. Eles iam ajudar os Carabinieri locais a fazer uma última varredura na área onde Brando tinha comido a salsicha tóxica. Entre eles estava Antonio Morasca, 62, cujo cachorro Thor também comeu uma salsicha envenenada, jogada embaixo do carro de Morasca, na manhã de 6 de janeiro.

"Eu tirei da boca dele, mas ele fugiu –ele adorava fugir– e pôs outra na boca", disse Morasca. "Ele começou a tremer. Nós o levamos de volta para a cidade, e ele começou a espumar. Nós o fizemos comer sal para vomitar, mas o branco de seus olhos ficou vermelho. Suas pernas se esticaram e ele ficou rígido. Estava morto antes de chegarmos à clínica. Meia hora."

Cidade de Camerata Nuova, nas montanhas Simbruini, no centro da Itália
Cidade de Camerata Nuova, nas montanhas Simbruini, no centro da Itália - Stephanie Gengotti - 12.jan.23/The New York Times

Os homens balançaram a cabeça. "Para nós, o cachorro é como uma criança", disse Tomassetti. "Na verdade, mais que uma criança."

Daniele Formichetti, chefe da divisão florestal e canina dos Carabinieri, liderou a caçada, depois que, no início da semana, encontrou uma salsicha suspeita, que as autoridades enviaram ao laboratório.

Ele teve um palpite de que o culpado era um caçador de trufas que sabia onde não deixar seus cães farejarem. Seu colega, Ettore Maceroni, teorizou que um caçador havia trabalhado na área durante alguns dias e então jogou veneno para matar a concorrência. Eles pensaram em parar os carros na estrada da montanha para vasculhar porta-luvas e porta-malas em busca de salsichas envenenadas. Nenhum dos dois estava otimista sobre pegar o assassino. "Ninguém fala", disse Maceroni.

Os Carabinieri e os homens atravessaram uma estrada esburacada dividindo as planícies usadas como cenário nos faroestes-espaguete. "Este é o campo de batalha do caçador de trufas", disse Tomassetti enquanto saía do carro perto do local da morte do labrador. Um pastor-belga especialmente treinado, Asia, saltou da van dos Carabinieri. "Busca", disse Formichetti.

Enquanto Asia investigava, Tomassetti e seus amigos reclamaram que havia um "omertà", ou código mafioso de silêncio, entre os caçadores. "Talvez seja um de nós", disse ele. "Não olhe para mim quando diz isso!", retrucou Mario Morganti, 62. Alguns suspeitavam de um morador que tomava café no bar da cidade.

"Vou me esconder na floresta", disse Bravi, que quase perdeu seu próprio cachorro, também chamado Bella, há 12 anos, envenenado. Ele tinha instalado uma câmera em seu jipe para ver quem se aproximava enquanto saía com os cachorros. "Quando eu o pegar e o vir na praça, vou quebrar suas mãozinhas."

Asia terminou sua varredura sem encontrar nenhuma evidência. Tomassetti então deixou sua Bella sair da traseira do jipe, mas prudentemente a manteve na coleira. Quando eles se aprofundaram na floresta, ele a soltou. Ela descobriu trufas e então encontrou o corpo da raposa. Depois que os Carabinieri levaram o cadáver para o laboratório, Tomassetti e os outros voltaram para seus jipes. Enquanto Bella arranhava seu caixote, ele olhou para a floresta e lamentou que os caçadores de trufas locais quisessem tudo para eles.

O jipe voltou para Roma, e ele caminhou com Bella em frente à prisão de segurança máxima perto de sua casa. "É aí que esses assassinos devem estar", disse.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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