Itamaraty impede acesso a processos de punição a diplomatas

OUTRO LADO: Corregedoria alega que ações podem conter dados pessoais; papéis incluem depoimento em que chanceler defendeu acusado de assédio

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Rio de Janeiro

O Itamaraty impediu o acesso público a PADs (processos administrativos disciplinares) já encerrados contra diplomatas e servidores de seu quadro sob alegação do risco de divulgação de dados pessoais.

Entre os processos solicitados está o que puniu o embaixador aposentado João Carlos de Souza-Gomes devido a denúncias de assédio sexual e moral. Como a Folha revelou, o chanceler Mauro Vieira, em depoimento para a investigação, fez defesa enfática do colega e desestimulou queixas contra superiores.

O chanceler Mauro Vieira durante solenidade de transmissão de cargo no Ministério das Relações Exteriores, em Brasília
O chanceler Mauro Vieira durante solenidade de transmissão de cargo no Ministério das Relações Exteriores, em Brasília - Pedro Ladeira - 2.jan.23/Folhapress

A falta de acesso às ações contraria a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a jurisprudência da CGU (Controladoria Geral da União), que determina publicidade de processos administrativos disciplinares já encerrados. Também vai de encontro ao discurso de transparência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), crítico da imposição de sigilo a documentos do governo durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL).

A Corregedoria do Serviço Externo do Itamaraty negou o acesso aos documentos sob a justificativa de que os processos poderiam conter dados pessoais. Alegou também que a análise de todas as 18 mil páginas solicitadas consumiria cerca de um ano e cinco meses de trabalho de um servidor.

A proteção de dados pessoais é a base da justificativa de boa parte dos sigilos de cem anos impostos no governo Bolsonaro. Na resposta aos pedidos da Folha, a corregedoria do Itamaraty não faz referência ao prazo máximo de segredo desses casos, sugerindo que seja feito novo pedido "com especificação do escopo temporal e/ou temático". Na prática, a orientação impede o acesso à íntegra das ações.

A Lei de Acesso à Informação veda a disponibilização de PADs em andamento. Segundo o Manual de Processo Administrativo Disciplinar da CGU, a legislação "determina que, uma vez concluído, ou seja, com a edição de seu julgamento, deixa de subsistir a situação que justifica a negativa de acesso ao conteúdo".

Para Fabiano Angélico, consultor e especialista em transparência, "o entendimento da própria CGU é de que o princípio da publicidade está acima da proteção a dados pessoais". Ele também afirma ser irregular a alegação de excesso de tempo para análise dos processos para localizar eventuais dados pessoais.

"A lei diz que as tecnologias de informação e comunicação devem ser usadas para processar dados e informações. Eles deveriam ter esses documentos no computador. Nele, é possível buscar mais facilmente o rol de termos que remetem a dados pessoais", afirma o consultor.

Angélico afirma ainda que negativas como essa costumam ocorrer devido a uma preocupação legítima de gestores que temem ser alvo de processos dos alvos das PADs. Ele, porém, aponta o corporativismo como outra motivação. "Itamaraty e Forças Armadas são parecidos nesse apego à opacidade."

A Folha fez dois pedidos via LAI. O primeiro teve como foco apenas o PAD contra Souza-Gomes. Foi nesse procedimento que Vieira lamentou o vazamento de informações à imprensa por prejudicarem um diplomata que, na avaliação dele, "sempre teve conduta profissional impecável em relação aos colegas".

Além da defesa de Souza-Gomes, o ministro das Relações Exteriores condenou o envio de queixas contra chefes de postos diplomáticos direto ao Itamaraty, em Brasília, sem antes uma tentativa de conciliação entre subordinados e superiores. "O depoente [Vieira] crê que o adequado em uma relação de trabalho é discutir quaisquer desavenças e problemas entre subordinados e superiores antes de encaminhar a questão a outras instâncias", disse ele, respondendo a questionamento do acusado e de seu advogado.

Vieira, por meio de sua assessoria, disse que se referia apenas a discordâncias e que defende, sim, a denúncia de casos de assédio. Declarou ainda que o tema será prioridade em sua gestão.

A corregedoria havia, inicialmente, negado o acesso a esse documento. Após ser procurado pela reportagem para comentar a negativa, o Itamaraty respondeu com os mesmos argumentos outro pedido da Folha, realizado dias depois do primeiro, no qual solicitava acesso a outro conjunto de PADs.

Lula deu um mês ao ministro da CGU, Vinicius Carvalho, para analisar os decretos de sigilo de cem anos da gestão Bolsonaro. Ele já havia sinalizado que não haveria um revogaço imediato, para garantir o princípio da lei, que é o interesse público. Na campanha, prometeu emitir um decreto para revogá-los.

Entre os casos estão as restrições de acesso à carteira de vacinação de Bolsonaro, à ação da Receita Federal referente a Flávio Bolsonaro e ao processo disciplinar contra o ex-ministro Eduardo Pazuello.

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