Só 5% das ruas de Lisboa têm nomes de mulheres, aponta estudo

Desigualdade também aparece em nomes de hospitais e jardins; nos poucos topônimos femininos, predominam rainhas e santas

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Ana da Cunha
Lisboa | Mensagem de Lisboa

As ruas de Lisboa não são apenas lugares de passagem, mas também de homenagem. Percorrer a região significa percorrer a história da cidade, de Portugal e até mesmo do mundo. Mas, como já se sabe, a história nem sempre preservou a memória de todos: ou melhor, de todas.

O cientista de dados Manuel Banza reuniu as ruas de Lisboa recorrendo a dados da Câmara Municipal e concluiu que, de praticamente 5.000 endereços, apenas 5% são topônimos femininos, contrastando com os masculinos —44%.

Mulheres participam de ato que marca 48º aniversário da Revolução dos Cravos em Lisboa, capital de Portugal - Patricia de Melo Moreira - 25.abr.22/AFP

O mesmo processo foi feito para os jardins (7% são topônimos femininos, 36% masculinos), as escolas (14% femininas, 43% masculinas) e hospitais (11% femininos, 54% masculinos).

O objetivo de Manuel Banza é que "haja uma ação voluntária de reequilíbrio, dando mais nomes de mulheres a ruas, e talvez esse seja o primeiro passo para ajudar a aumentar o reconhecimento do papel desempenhado pelas mulheres na nossa história e nas nossas cidades".

"Olhar para os números é sempre fundamental", diz Patrícia Santos Pedrosa, arquiteta e pesquisadora do Centro Interdisciplinar em Estudos de Gênero da Universidade de Lisboa. "Passamos a ter fatos, e os fatos são claros." Ou seja, não há igualdade.

As freguesias de São Vicente, Carnide e Campo de Ourique são as que mais nomes de mulheres têm em percentagem do total. Não há propriamente uma explicação para isso.

Os resultados desse estudo vão ao encontro de outro trabalho, realizado na cidade do Porto por João Bernardo Narciso e Cláudio Lemos: também ali 44% das ruas levam topônimos masculinos. Em 2018, o jornal Público fez essa análise para o país inteiro e concluiu que apenas 15% das ruas tinham nomes próprios de mulheres. Para perceber o que aqui se passa, há que percorrer a história das cidades.

Em Lisboa, a toponímia foi formalizada no tempo do Marquês de Pombal –até então, as ruas eram simplesmente conhecidas por nomes que os populares lhes davam. Nada formal. Entretanto, a partir do século 19 começaram a homenagear figuras ilustres.

Mulheres? "Só rainhas, santas, pontualmente algumas personagens anônimas ligadas a algumas profissões", diz Patrícia Santos Pedrosa. Banza confirma: "Muitos dos nomes são de santas ou de rainhas, mais do que nos homens em percentagem de cada gênero".

É o caso da maior rua com nome feminino, a rua Maria Pia, a primeira circular de Lisboa, que homenageia a rainha Maria Pia de Saboia, mulher do rei dom Luis 1º, conhecida por suas obras de caridade. Entre as anônimas, há o caso de figuras como a Ferrugenta, do beco da Ferrugenta.

Quem era? Leonor Maria, uma moradora local e padeira real, que ficou viúva de um homem com o apelido Ferrugento. Uma mulher conhecida pelo nome do marido.

Ou a Triste-Feia, que Appio Sottomayor descrevia assim numa comunicação nas Jornadas de Toponímia de Lisboa: "Da mulher que foi a Triste Feia não se sabe o nome exato nem, rigorosamente, o tempo em que viveu. O que se sabe ao certo é que foi o povo quem imortalizou as suas características. Diz a tradição que ali moraram três irmãs, sendo duas delas raparigas normais e com o viço próprio dos verdes anos; a terceira, porém, possuía feições tão pouco agradáveis à vista que os rapazes que passavam em busca de conversadas fugiam comentando: ‘Que focinho de porca!’, ‘que medonha seresma!’".

E segue: "Claro que as irmãs casaram, e ela ficou sozinha. Mas, ao que rezam as crônicas, a simpatia nada tinha a ver com os atributos físicos. Assim, muita gente vencia a relutância por um ser tão feio e conseguia entabular conversa e até quase travar amizade. Mas a vida da pobre era passada quase sempre sentada à sua porta, numa melancolia doente. O certo é que morreu —e ninguém a esqueceu".

Só a partir da República é que esse cenário começa a mudar. No Estado Novo, chegaram a homenagear 55 mulheres, ao erguerem-se novas placas toponímicas: entre elas estão Marie Curie, Florbela Espanca e Maria Amália Vaz de Carvalho. Mas há uma alteração após o 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos. "[Isso se deu] com ruas como Natália Correia, Catarina Eufémia ou arquiteta Maria José Estanco. É óbvio que se começam a valorizar outros perfis", diz Santos Pedrosa. "Há uma alteração de paradigma."

Como mostra o estudo de Manuel Banza, a evolução da toponímia feminina em Lisboa não tem sido significativa –uma preocupação que já foi expressa pelo partido Bloco de Esquerda na Câmara neste ano.

É que dar topônimos femininos, numa cidade dominada por ruas de homens, não é apenas uma homenagem ou forma de dar a conhecer o seu contributo: funciona também como "um modelo para os mais novos", explica Santos Pedrosa. "Amplia o que poderá ser o mapa de modelos de mulheres, ajuda a nos imaginar outras coisas que não o que os estereótipos de gênero configuram."

E é precisamente por isso que a arquiteta considera importante que a Assembleia Municipal, a Câmara e a Comissão de Toponímia de Lisboa se comprometam, a partir de agora, a atribuir apenas topônimos femininos. "Para garantir que haja uma microcompensação pelos séculos e séculos de esquecimento."

Manuel Banza chega mesmo a dizer em relação ao trabalho realizado: "Isso pode inspirar outras mulheres. Na luta pelos seus direitos e a alcançarem sucesso nas suas carreiras e vidas pessoais. Passando o testemunho para as próximas gerações". Para Banza, o objetivo dessa análise foi quantificar a desigualdade e tentar que se inicie o debate que é o mais produtivo, o de pensar em nomes de mulheres que tiveram um papel importante na cidade ou no país e que ainda não existam nas ruas de Lisboa.

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